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Aramis

"Amarcord" de Chico em sua máquina do tempo

"Amarcord" vive dentro de muitos. Poderia-se até dizer, de todos - se houvesse em cada um, ao menos um instante de emoção, ternura e sobretudo, aquela magia de projetar na máquina do tempo da memória os dias verdes da infância e adolescência. Fellini é universal, no momento em que faz a sua máquina do tempo ganhar as mais belas imagens refletidas em retângulos iluminados de encantamento - e graças ao que, mais do que nenhum outro momento, "Amarcord" deixa de ser apenas o título de uma (de suas várias) obra(s) prima(s) para merecer adjetivação, digna de constar numa edição do "Aurelião" do futuro, quando alguém, com a mesma abertura filológica do mestre Buarque de Holanda, ampliar ainda mais o seu dicionário. Um "Amarcord" muito especial, que transpõe ao regional (Lapa, Curitiba ou Ponta Grossa) é o que está nas 141 páginas de "Espada de Mentira" do contista, advogado e, sobretudo, memorialista, Francisco Brito de Lacerda. Que o bom Chico Brito de Lacerda, 66 anos - a serem comemorados no próximo dia 21 de setembro - escreve bem, não é novidade. Quem acompanha suas crônicas e contos, há anos espalhados pelas páginas dominicais da "Gazeta do Povo" ou aqui mesmo em "O Estado do Paraná", sabe reconhecer o seu estilo, que sem deixar de ser regional é universal no tratamento que dá aos temas abordados - especialmente porque fala das pessoas, coisas e fatos que vivenciou ou acompanhou de perto. Nove anos após ter feito a primeira edição de "Espada de Mentira" - sua primeira experiência em reunir textos esparsos, divulgados apenas na imprensa - Chico Lacerda promove uma reedição, no qual excluiu dois temas ("Cadência de um Sino" e "Diário de Jacinta"), alheios à idéia básica (memórias do período compreendido entre 1930/1950) dando maior unidade a obra. Em compensação incluiu um conto ("Parceiro Maldito"), e quatro crônicas - "O Livro da Vaquinha", "Os Meninos", "Tirintintin" e "Mundo Velho", que ficaram perfeitos. "Os Meninos" é um (quase) roteiro cinematográfico sobre o outono da vida de três velhos solteirões - os septuagenários Carlos, Marcelo e Paulino, vivendo no casarão da família na Praça Tiradentes, da masmorrenta Curitiba dos anos 20/50, durante anos em companhia da irmã Nanhã, e, após a sua morte, só eles - morrendo pouco a pouco. Em dez páginas, é traçado o perfil dos "meninos" numa linguagem de tanta emoção que faz com que o leitor estabeleça uma empatia com os mesmos - em seu outono de vida, dos sonhos que passaram, das ilusões mortas, a espera da grande amiga (ou inimiga?) que chega um dia, invariavelmente, para todos. O clima de "Os Meninos" que lembra as imagens que Nirto Venâncio, 37 anos, jornalista e cineasta, conseguiu colocar em seu curta "Um Cotidiano Perdido no Tempo" (premiado na Jornada de Cinema da Bahia, 1988 e que na semana passada recebeu o troféu "Margarita de Prata" que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil concede, anualmente, aos melhores curtas e longas em suas mensagens humanas). O filme de Venâncio, rodado numa cidade do Interior do Ceará, focaliza a vida de três irmãs, octogenárias - em seu cotidiano, e a chegada da morte. Uma pequena jóia, emotiva em todos os sentidos. Sem sequer saber da existência deste filme - ainda inédito em Curitiba - Brito de Lacerda, com base em memórias familiares, criou uma crônica semelhante, com a mesma emoção. Se houvesse um cineasta (ou videomaker) com tanta sensibilidade nas imagens como Chico tem nas letras, "Os Meninos" poderia resultar num belíssimo trabalho visual. Cada uma das crônicas (algumas se confundindo com pequenos contos) de "Espada de Mentira", representam uma viagem ao tempo, com Chico falando de sua família e amigos, recordando seus anos de aluno do Colégio Militar, do Liceu Rio Branco, Gimnasium Paranaense, e, mais tarde, no Regente Feijó, em Ponta Grossa, onde fez o "Tiro de Guerra" (1942) chegando a cabo. Aluno da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (1945/49), fala também de Curitiba dos anos 40, dos tipos populares de sua Lapa - cidade em que nasceu, filho de uma família de 12 irmãos (seu pai, o coronel José Lacerda, foi um dos pioneiros da industrialização da erva mate), em descrições que o aproximam, como dissemos no início, a imagens Amarcordianas. Advogado com 40 anos de trabalho, procurador aposentado do Tribunal de Contas, Francisco substituiu a João de Deus Freitas Neto na direção da "Imprensa Oficial do Estado" (1984-1986) e assumindo o Arquivo Público - na função que mais o gratificou profissionalmente - ali fez um magnífico trabalho, inclusive dando continuidade as edições da revista "Archivos" - criada pelo seu antecessor, Mbá de Ferrante (falecido há menos de dois anos), hoje, infelizmente, interrompida. Dentro de sua coerência política, renunciou a direção daquele Departamento da Secretaria da Administração quando decidiu acompanhar seu amigo José Richa no PSDB e não se sentiu à vontade em permanecer num governo peemedebista. Vereador na Lapa pelo PDC (1958), Francisco foi o primeiro da clã dos Lacerdas a romper com Ney Braga, em 1965, quando discordou das ligações aceitas pelo mais poderoso dos lapianos na política paranaense. Candidato a deputado estadual em 1968, ficou numa quarta suplência e, dois anos depois, foi suplente na chapa de José Richa ao Senado - que fez 700 mil votos mas perdeu para a dobradinha Accioly Mattos Leão. Em 1978, voltaria a disputar uma eleição - desta vez para a Câmara Federal, fazendo 8 mil votos e ficando numa 15ª suplência. - "Colecionei derrotas nas urnas mas que me engrandeceram pessoalmente", comenta. Em 1985, publicou "Alçapão das Almas", mesmo ano em que, mostrou também seu lado de historiador ao recordar o "Cerco da Lapa - Do Começo ao Fim". Agora, ao mesmo tempo que cuida de uma reedição de "Alçapão das Almas", espera encontrar editor para dois novos livros - "Cega Obsessão" (ou "A Porta Preta") e "Brisas Distantes", na mesma linha de crônicas e contos memorialísticos. Modesto, sem pretensões intelectuais maiores, Brito de Lacerda, casado há 40 anos com dona Zeni, 4 filhos, 6 netos, um bisneto, sem aceitar uma aposentadoria jurídica, debruça-se em suas imagens do passado, fazendo uma bela crônica do Paraná, sem cair, porém, no regionalismo. Explica: - "Sempre procurei universalizar a Lapa...". LEGENDA FOTO - Chico Lacerda: memórias fellinianas da infância e juventude num belo livro.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
21/07/1989

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