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Aramis

Amigos para sempre

"Amigo é coisa para se guardar / do lado esquerdo do coração." ("Canção da América", Fernando Brandt / Milton Nascimento) Das muitas leituras que uma obra da dimensão de "Besame Mucho" (Cine Itália, 5 sessões) oferece, uma, particularmente, que emociona: a exaltação a amizade. Entre tantas adjetivações que podem ser feiras a este belíssimo filme de Francisco Ramalho Júnior, destaca-se o lado de seu canto a amizade viril entre dois homens, ao longo de quase quatro décadas. É inegável que tem uma estrutura voltada a geração nascida nos anos 40: adolescentes ao principiar a década de 60, os sonhos e projetos nos tumultuados anos 70 e a crise a partir dos quarenta anos. A originalidade da peça de Mário Prata em contar a estória de forma regressiva, mantida no roteiro do filme, pode, nos primeiros 10/15 minutos, confundir o espectador menos acostumado a linguagens inovadoras. As fantasias sexuais de Tuca e Dina que acabam numa tragédia e a separação de Xico / Olga chocam, a princípio, a quem entra no cinema para assistir aquilo que foi anunciado como uma comédia. Mas, a partir das primeiras regressões no tempo - 82/79/77 - o riso substitui a dramaticidade, embora a leitura jamais esqueça o lado social e humano. A colocação da estória em "tablaux", rápidos, localizados - numa ajustadíssima montagem ao qual o curitibano Mauro Alice deu toda sua experiência - faz com que o filme adquira um pique excelente. Muitos que viram a peça em suas encenações no Rio e São Paulo a partir de 1982 fizeram restrições ao filme. Como no caso de "O Nome da Rosa" as comparações entre as duas narrativas - a literária/teatral e a cinematográfica - pode provocar divergências nas apreciações. Entretanto, uma peça como esta ao chegar ao cinema ganha um ritmo e embora estruturalmente a ação seja em torno dos quatro personagens-eixo, amplia-se também personagens menores que, no palco, eram apenas citados ou mesmo inexistentes - como Irmã Encarnacion (Isabel Ribeiro), César (Paulo Betti) e Aninha (Giulia Gam). Habituado a buscar raízes literárias para seus filmes desde sua estréia no longa-metragem, há 21 anos ("Anuska, Manequim e Mulher", de um conto de Ignácio de Loyola) e tendo uma premiada transposição a tela da peça de Consuelo e Castro ("A Flor da Pele"), Ramalho sentiu-se a vontade na nem sempre fácil relação teatro-cinema. Nisto, a emoção de se envolver num trabalho com nítidos traços autobiográficos contou muito, tanto de si como de Prata, autor do texto original. Prata, paulista de Lins, 41 anos, Ramalho, paulista de Santa Cruz dos Palmares, 46 anos, criado em Votuporanga, São José do Rio Preto e Pirassununga - escolhida como a base da adolescência de seus heróis - transmite, assim, a empatia de cidades do Interior - com seus valores, seus costumes, suas características de uma classe média conservadora de 30 anos passados. E a identificação de situações e ambientes pega o espectador na faixa ao redor dos 40 anos pelo pé, mas a liberdade com que a sexualidade é tratada - sem, em momento algum, cair no grosseiro ou mesmo no erótico - fazem com que o filme chegue também a platéias mais jovens. Com tudo para se tornar, instantaneamente, um sucesso de bilheteria, "Besame Mucho" fracassou nacionalmente há 2 semanas e só agora começou a reagir nas bilheterias - o que tornava difícil prever, no início da semana, se continuaria ou não em exibição no Cine Itália (apesar das sessões lotadas no último domingo). Cinéfilo assumido, Ramalho Jr. não nega influências de "Amigos para Sempre" (Georgia's Friends ou Four Friend, 1981, de Artur Penn) - um dos mais belos hinos a amizade já realizado pelo cinema americano, assim como a paixão explícita por filmes-ícones que o fez manter demoradas negociações com a 20th Century Fox para comprar os direitos de utilização de menos de 3 minutos do mais famoso dos filmes estrelados por Marilyn Monroe (1926-1962), "O Pecado Mora ao Lado" (The Seven Year Itch, 1955, de Billy Wilder). Além do pagamento de mais de US$ 10 mil pelos direitos de utilização das seqüências, exigências como a de submeter o roteiro a apreciação dos herdeiros de Marilyn Monroe, para saber "qual a forma que as cenas seriam usadas". Outra citação-admiração de Ramalho: na seqüência em que Xico e Olga discutem defronte ao Cine Rex, ao lado, um cartaz de "Ao Despertar da Paixão" (Jubal, 1956, de Delmer Daves), outro filme que marcou sua adolescência. A reconstrução dos ambientes do passado - a partida de Xico (José Wilker) para São Paulo, numa seqüência noturna, com os filhos fazendo a fotografia de José Tadeu Ribeiro ganhar uma tonalidade especial, o baile no clube de Pirassununga animado pela orquestra de Sylvio Mazzuca e mesmo, na ação mais contemporânea, o bar Metrópole ou o apartamento do Copam, na Capital paulista - mostra todo o esmero com que a produção foi desenvolvida. Não foi sem razão que nos últimos anos, sem dirigir, Ramalho se tornaria um dos mais requisitados produtores-executivos, responsável inclusive pela administração de "O Beijo da Mulher Aranha", de seu amigo Hector Babenco - agora retribuindo-o como produtor executivo de "Besame Mucho". Acusado de fazer "cinemão", Ramalho assumiu a competência e o resultado é que "Besame Mucho" é um dos mais bem acabados filmes feitos no Brasil até hoje. Não fica, entretanto, apenas no perfeccionismo as imagens - aliás, a fotografia não busca angulações virtuosísticas, mas tem um toque quase de álbum de memórias - e vai a fundo nos personagens. A história de dois amigos - Xico (Wilker) e Tuca (Antônio Fagundes) e de suas mulheres - Olga (Glória Pires) e Dina (Christiane Torloni) refletem uma parte deste Brasil que passou tão rapidamente por tantos de nós: são flashes, é claro, de projetos existentes - mais ou menos realizados, e sonhos intelectuais, do poeta (Tuca) que a vida empresarial matou ou do dramaturgo em crise que da relação com a namorada de infância alienada a vê crescer como mulher-idéia, chegando a substituí-lo em seu trabalho de escritor. A peça de Mário Prata - que, anteriormente, havia se voltado a repressão política em "Fábrica de Chocolate" (abordando a tortura nos anos 70) tem inúmeros fios para reflexão e análise - exaustivamente trabalhados no roteiro desenvolvido a quatro mãos com Ramalho Jr. A própria ironia do título - descalcado do mais famoso dos boleros de Consuelo Velasquez - ganha uma conotação especial no virar das páginas do tempo, no álbum de memórias com que a história vai sendo contada - e que a econômica trilha sonora de Wagner Tiso buscou num arranjo minimalista do bolero, sem interferir nas músicas da época - só explodindo no grande baile final. "Besame Mucho", o grande injustiçado no último Festival de Gramado - no qual obteve apenas os Kikitos de roteiro adaptado e figurinos (Domingos Fuschinis) é um filme com a emoção do tempo, da reflexão às vezes dramática, mas quase sempre bem humorada - daquele país maravilhoso que todos nós habitamos um dia: a juventude. E da qual ficam as lembranças e os afetos da amizade. LEGENDA FOTO - Xico (José Wilker) e Olga (Glória Pires) em "Besame Mucho": um painel retroativo do Brasil entre 1986/1964.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
26/08/1987

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