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Aramis

Assim é a vida...

"Minha família anda longe/ com trajos de circunstância: uns converteram-se em flores outros em pedra, água, líquen; alguns, de tanta distância nem tem vestígios que indiquem uma certa orientação. Minha família anda longe - na Terra, na Lua, em Marte - uns dançando pelos ares outros perdidos no chão". [Cecília Meireles (1901-1964), "Vaga Música"]. Como em "O Baile" (1983), há apenas um cenário. Interior de uma grande casa tipicamente romana: a salam os quartos, a cozinha e, especialmente, um longo corredor - símbolo da passagem do tempo e da vida. Neles movem-se personagens ao longo de 80 anos e num micro-universo trazem o amor, as paixões, as angústias e a simplicidade do quotidiano. Se em "O Baile", apenas com a música e a dança através dos tempos, sem uma única palavra, se reconstituiam décadas da vida européia (e em conseqüência deste século), com trajes, ritmos e rostos traduzindo as mudanças políticas, de comportamento e da presença das pessoas, em "La Famiglia", a proposta é ainda mais intimista: apenas um núcleo familiar, centrado em torno de Carlos, da festa de seu batizado, em 1906, a festa dos 80 anos - divididos em oito quadros-capítulos, um para cada dez anos. Ettore Scola, 57 anos, 35 de cinema, é hoje, ao lado de Fellini, o mais pessoal e profundo dos cineastas italianos. Conseguindo mergulhar a câmara em histórias simples obtem a grandiosidade que só os verdadeiros mestres conseguem e isto faz com que "A Família" resulte em nova obra-prima - que lhe valeu, pela quarta vez, a indicação ao Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro neste ano, (em 1977, "Um Dia Muito Particular" e em 1983 com o "Baile" também teve indicações na mesma categoria). Filmes como "A Família" (cine Palace-Itália ainda hoje; a partir de amanhã no cine Itália) comportam as mais diferentes análises - desde o sentido social com que se integra na obra de um cineasta dos mais coerentes, até, simplesmente, o lado emotivo. Um canto-exaltação à família, seus valores, suas virtudes, mas sem a canalhice oportunista de "Atração Fatal", por exemplo. Ao contrário, o roteiro desenvolvido por Scola em colaboração com Furio Scarpelli e Ruggero Maccari, faz com que a simplicidade dos personagens, o humor espontâneo em diálogos, expressões e comportamento e o lado emotivo desta cavalgada ao longo de 8 décadas, como uma máquina do tempo ligada aos sentimentos, a empatia que o faz chegar ao público de qualquer parte do mundo. Apesar dos muitos personagens, aqui o grande cenário é a casa da família - filmado apenas interiormente (a fotografia de Ricardo Aranovich é perfeita, com os tons que se identificam a cenografia de Luciano Ricceri) e na qual acontece tudo: a família que sofre, briga, se ama - uma casa mais verdadeira do que fictícia, disposta a acolher a todos e deixá-los irem, ao longo dos anos e dos acontecimentos. Estabelecendo-se pontos de referência a outros filmes que partiram também de núcleos familiares para desenvolverem painéis cobrindo muitas décadas (às vezes séculos) - (recurso que também a literatura tem buscado) - "A Família" se diferencia justamente pela síntese no limite físico do espaço - uma verdadeira peça de teatro, em um único cenário. Se, por exemplo, "Assim Caminha a Humanidade" (Giant, 1955, de George Stevens), espalhava-se pelas amplidões do Texas para descrever a saga da família Benedict (e a autora do romance, Edna Ferber, sempre buscou as grandes famílias para compor painéis históricos), em "A Família" de Scola não há gigantismos, heróis ou vilões: Carlo, o personagem-condutor, nasce quase com o século, é um homem simples - um garoto normal, um jovem que seria um modesto professor de literatura italiana, casa-se com uma aluna, Beatrice, embora amasse, por toda a sua vida, a cunhada, Adriana. Seu irmão, Giulio; as três tias solteironas; o primo Enrico, os filhos, netos - todos gente como a gente. Mesmo o passar da história é colocado discretamente - da guerra de 1914/1918 aos conflitos da Itália contemporânea, passando pelo fascismo, em momento algum, Scola força a barra para o social-político, mantendo a família em seu distanciamento, o que não significa que o mundo exterior não tenha ali seus reflexos: a perseguição que Carlo sofre por resistir ao fascismo, as conseqüências da guerra no comportamento do irmão Giulio, etc. Mas o que permanece com maior força é a vida em si, familiar - sem exaltações moralistas (embora nestes tempos aidéticos, tudo que se relacione a uma valorização familiar seja vista como indicativo deste novo marketing de comportamento) - mas no prisma humano e simples. A casa com suas janelas - das quais são feitas as únicas seqüências ao exterior, as estações do ano, o clima - o vento que sopra e atinge suas vidraças, a neve e a chuva, as árvores que desfolham e florescem. Como a própria vida, em ciclos, os personagens que nascem, crescem e morrem - de Carlo ao neto Carletto, o qual, no final, depois de brigas e viagens ao redor do mundo, dividirá a solução do velho avô, e no dia de seus 80 anos, convida todos os parentes para a festa. Tanto a abertura do filme - no batisado de Carlo - como a festa dos 80 anos - com as imagens fixas do registro de uma fotografia - só que a explosão do magnésio da primitiva câmara substituída por uma Polaroide (por que não o vídeo, para uma maior atualização dos tempos? ) Uma história de fatos triviais, em sua aparência, mas identificados pela ternura, com os personagens crescendo e envelhecendo - o que faz com que ao menos os principais tivessem diferentes intérpretes: Carlo, menino (Emanuelle Lamaro), depois, dos 20 aos 40 anos, vivido por Andrea Occhipinti e, finalmente, Vittório Gassman (40 aos 80 anos), numa atuação esplêndida; Beatrice, vivida por Cecília Dazzi aos 18 anos; depois Steffania Sandrelli (50 aos 78 anos); sua irmã - e a grande paixão de Carlo, Adriana, a pianista, vivida por Jo Champa (aos 20 anos) e Fanny Ardant (maravilhosa) depois dos 30 anos; o irmão Giulio (Ioska Versari/ Alberto Gimignani/ Massimo Deapporto) - entre outros personagens que conduzem a história. As tias Margherita (Athina Cenci), Luisa (Alessandra Paneli) e Ornella (Monica Scattini), Jean Luc (Philil Noiret), o noivo francês de Adriana (e que aparece em apenas uma das seqüências, mas das mais bem humoradas); o tio Nicola (Gimapiero Gregori/Renzo Palmer), Adelina (Consuelo Pascali/Ilaria Stuppia), primeira empregada da casa, depois esposa de Giulio - enfim todo aquele universo de pessoas que, surgindo na tela, parecem como conhecidos e amigos - de uma família que já visualizamos ou imaginamos. Para o público de descendência italiana, então, a emoção ainda é maior. Toda a sensibilidade que Ettore Scola colocou em filmes como "Nós Que Nos Amávamos Tanto" (1974) ou "Um Dia Muito Especial" (1977), encontra uma forma de síntese em "A Família", cuja emoção é ainda mais ampliada com a maravilhosa trilha sonora de Armando Trovaioli (do tema central as músicas ocidentais), numa identificação perfeita a todo o clima de amor/emoção que o filme traz (Trovaioli, é bom lembrar, foi o autor de uma das dez melhores trilhas do cinema de todos os tempos, "Sete Homens de Ouro"). Pela síntese-espaço do cenário e envolvimento em torno de personagens tão simples (mas que humanidade em cada um!), "La Famiglia" poderia ficar apenas na nostalgia barata. Isto se não houvesse o talento de Scola, que antes mesmo de rodar o filme - um projeto que acalentava há anos, disse: - "Mais do que melancolia, falarei de alegria. Alegria do tempo que passa, bagagem de memória que se enriquece. Basta apenas que não seja pesada e não obste o caminho. O bonito é andar ainda mais livre, sem pensar e sem indiferença." Em sua simplicidade, "A Família" tem a dimensão das gerações que se sucedem como em "Assim Caminha a Humanidade" - com o humor que Black Edwards soube colocar também num filme sobre o tempo e chegada da velhice - "Assim é a vida" ("That's Life", 1985). Entretanto, Scola em "La Famiglia" foi mais além e realizou imagens que possuem a ternura das palavras de um Mario Quintana, pois se o maior de nossos poetas vivos fosse cineasta, por certo faria um filme como este. E que bem poderia ter como epígrade um de seus poemas: "A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa Quando se vê, já são 6 horas: há tempo... Quando se vê, já é 6ª feira... Quando se vê, passaram 60 anos... Agora, é tarde demais para ser reprovado... E se me desse - um dia - uma outra oportunidade, eu nem olhava o relógio seguia sempre, sempre em frente... E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas." ("Seiscentos e sessenta e seis", do livro "Esconderijos do Tempo", 1980). LEGENDA FOTO 1 - Carlo (Vittorio Gassman) e Adriana (Fanny Ardant) aos 40 anos... LEGENDA FOTO 2 - ...e, aos 80. "A Família"; a emoção cavalgando na máquina do tempo das imagens.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
24/08/1988

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