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Aramis

"Baal", a poesia cruel de Brecht

Numa semana repleta de atrações, a temporada de "Baal" (miniauditório Glauco Flores de Sá Brito, 21,30 horas, até dia 17, ingressos a Cr$ 100,00) merece especial atenção. De principio por se tratar de um texto de Bertolt Brecht (Augusburg, 10 de fevereiro de 1898 Berlim Oriental, 14 de agosto de 1956), que estará justamente em cartaz, no 24o aniversário da morte do mais importante dramaturgo de nosso século. Mas "Baal" é também uma peça significativa por trazer a Curitiba o trabalho de um grupo de vanguarda, com propósitos novos e que há bastante tempo desenvolve trabalho da maior repercussão em Salvador: o Avelãz y Avestruz. Dirigido por Marcio Meirelles, também responsável pela iluminação, cenário e figurino, o Avelãz y Avestruz busca uma linguagem direta, polemica em suas encenações e ao se decidir pela montagem da primeira das peças escritas por Brecht (que teve sua estréia em Leipzig, em 1923), ao que consta, nunca antes montada no Brasil. Márcio buscou dar uma atualidade às ideias que o ainda jovem e inexperiente Brecht, já colocava em seu texto. Não se trata de uma peça de fácil consumo. É um espetáculo rico em efeitos simbólicos, que exige do elenco -Sérgio Martins, Fernando Fulco, Hebes Alves da Silva, Maria Eugenia, Milton Macedo, Paulo de Lácio e Sérgio Carvalho- extraordinario desempenho. Cada personagem tem múltiplas implicações e Marcio, em sua direção, buscou extrair as potencialidades de cada ator/atriz. Utilizando o jogo claro/escuro, com longos silencios, "Baal" pode surpreender quem não esteja acostumado com uma linguagem de teatro não convencional. Mas assim como uma escalada a uma montanha compensa o cansaço pelo panorama que permite dela deslumbrar, também o entendimento de "Baal", em suas várias propostas, é altamente gratificante a quem sabe estimular o bom teatro. Há alguns meses, quando vimos "Baal" em Salvador, sentimos a garra deste espetaculo, a seriedade de seus realizadores e interpretes. A temporada que agora fazem em Curitiba é significativa em vários aspectos, especialmente por permitir que os jovens que também se propõe a uma renovação do teatro e que tanto tem falado a respeito conheçam o que Márcio Meirelles e seus colegas vêm fazendo. No momento em que José Maria Santos, presidente da Associação dos Produtores e Empresários Teatrais do Estado do Paraná, promove na Casa do Jornalista um seminário para discussão de problema da classe, é oportuno também conhecer e debater propostas novas, idéias bem-fundamentadas, como a que o grupo Avelãz y Avestruz apresenta. Na mesma semana em que temos também em cartaz em outros auditórios do Guaíra, uma experiencia de fundir a música e o texto em "Diario de Bordo" (auditório Salvador de Ferrante 18,30 horas), uma revista de fundo político ("Rio de Cabo a Rabo", auditório Salvador de Ferrante, 21,30 horas) e o balé "O Último Trem", música de Milton Nascimento, roteiro de Fernando Brant, coreografia e direção geral de Oscar Araiz, com o grupo Corpo de Belo Horizonte. De Salvador, do Rio, de Minas, chegam propostas artísticas que devem ser vistas, estimuladas, discutidas... xxx Fernando Peixoto, ex-Teatro Oficina, ator, diretor e escritor, autor de um didático estudo sobre "Brecht, Vida e Obra" (José Álvaro Editor S/A, 281 páginas, 1968), conta que embora "Baal" seja a primeira peça de Brecht, em 1918 ele já havia anunciado ao romancista Lion Feuchtwanger que tinha feito um outro texto, "Spartakus", sobre um soldado que volta da guerra e se envolve na revolução (temática que retornaria em 1920, em "Tambores na Noite"), "Baal" nasceu de uma aposta: irritado com a visão idealista e sentimental de "O Solitário" de Hans Johst (que, mais tarde, seria um dos escritores mais destacados do nazismo), Brecht apostou com seu antigo companheiro de escola, George Pfanzelt, que escreveria em quatro dias uma peça superior sobre o mesmo assunto. O tema de Johst era a vida do poeta Grabbe. Brecht vira a peça de Johst pelo avesso, torce as cenas para sua visão de mundo. Escreve o que Bernard Dort chama de "biografia de um expressionista sem ilusões. Um atestado de óbito". Mergulhando à fundo na estrutura do teatro expressionista, rompe com os últimos exteriores do romantismo alemão. A aposta já foi uma atitude que Brecht voltaria a repetir muitas vezes em sua vida: a criação não é menos livre, nem limitada, pelo fato de partir de um modelo pré-existente. A criação pode nascer justamente do debate. A peça de Johst foi um objeto de reflexão para Brecht partir para uma obra profundamente pessoal, autobiografica em muitos sentidos, bastante individualista, mas ao mesmo tempo reflexo de toda uma geração destruída espiritualmente pela violencia de uma guerra estúpida e de uma revolução fracassada, desesperadamente voltada para o ataque anárquico e desenfreado contra todas as instituições preconceitos que sobreviveram à guerra. "Baal" não é ainda uma peça política mas tem um significado evidentemente político na medida em que é uma agressão brutal aos valores da sociedade burguesa. É verdade que o melhor teatro expressionista também foi antiburguês, mas em nenhuma obra da época os valores da sociedade foram negados e contestados com tanta violencia e tanto sarcasmo. E ao mesmo tempo que destrói tudo, "Baal" é um gigantesco hino à vida, à liberdade anárquica, individual, à poética e poderosa celebração do culto aos instintos mais primitivos, à natureza. Em determinado momento, o personagem-título (baseado, segundo Brecht, num poeta que realmente existiu), grita: "Temos que libertar o animal". A peça, estruturada livremente, diversas cenas sem ligação imediata, acompanhando a trajetória (permanentemente envolvida em bebida, mulheres, mortes, suícidios, assassinatos, homossexualismo, poesia e canções) do personagem, inclui muitas baladas nos cafés e bares noturnos). A própria estrutura da peça, em si, é uma espécie de balada da revolta, do desespero, da solidão, do sexo, da vida e da morte. Dos poemas-baladas que Brecht inclui um "Baal" o mais conhecido certamente é o do jovem que se afoga envolvida em algas ("os peixes frios nadavam no meio de suas pernas/ e plantas e animais ainda a incomodavam/ em sua última viagem/e então ela entrou em decomposição no rio/que já estava cheio de corpos decompostos) mas sem dúvida o mais surpreendentemente agressivo é o elogiado à privada. Aliás, no cenário, uma privada ocupa um lugar de destaque. "É um lugar onde nos sentimos bem Tendo acima as estrelas, abaixo os excrementos. Um lugar simplesmente maravilhoso onde Mesmo na noite de casamento é possível estar só. Um lugar de humildade, onde você descobre nitidamente Que não passa de um homem que nada pode conservar. Um lugar de sabedoria, onde voce pode preparar. A barriga para novos prazeres". Xxx Definida por um crítico como balada do nihilismo, "baal" é sobretudo seu personagem: um novo deus pagão, rebelde, indiferente à existencia ou à ausencia de Deus, com receio das crianças, apenas achando que não se deve ser muito preguiçoso, senão não há prazer, que é preciso ser forte porque o prazer e o gozo nos enfraquecem, sempre livre, sempre sem sentido, embriagado de álcool ou de poesia, homossexual, irreverente, produto que uma sociedade que ele condena, que ele refuta com sua liberdade, às vezes mesmo com sua ternura.Uma vítima que percorre os campos em busca de alguma solução, que termina morrendo como um cachorro, rastejando, buscando ar, claridade, solidariedade, calor humano. Com razão, Fernando Peixoto acentuou que "Baal" é a poesia da podridão, fruto típico de uma época podre. Na época que fez a peça final da segunda década deste século, Brecht ainda não tinha consciencia política clara. Escrevia em transe e mais tarde afirmaria: "Reconheço e advirto: falta clarividencia nesta peça. Mas o que mais sobra na peça é poesia, nas situações, nas cenas, na linguagem dos personagens, na força das imagens. Talvez seja o texto de teatro mais poético de toda a obra de Brecht. E o personagem título, este anti-herói, tão distante dos personagens expressionistas, numa peça que é uma denúncia do idealismo como visão do mundo, é uma marginal desesperado que: "Eu luto até o fim com unhas e dentes. Quero viver até o fim, mesmo que seja sem pele". E que apesar de assassino é capaz de um amor imenso: "Profanei cadaveres duas vezes porque tu tinhas que ficar limpo. Preciso disso. Não tive nenhum prazer juro". Quando estreou, há 57 anos passados, em Leinzig, "Baal" causou grande escandalo pois é ao mesmo tempo a história de uma liberdade individualista e a consequente história de uma solidão trágica. Xxx A temporada do grupo Avelãs y Avestruz será de dez dias. Tempo para que se discuta a sua proposta, se conheça esta peça diferente na obra de Brecht, um autor falecido há 26 anos passados e que se mantém com imensa atualidade, em tudo que disse e escreveu.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
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07/08/1980

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