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Aramis

Bandeira, o homem, o nímico e as crianças

"O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente" (Fernando Pessoa) O verso do maior poeta português de nosso tempo é citado num texto que há 2 anos o crítico Delmiro Gonçalves escreveu a propósito da arte da mímica, no programa comemorativo aos 25 anos de teatro de Ricardo Bandeira. E realmente, a aproximação não poderia ser mais feliz, pois se os dicionários definem a mímica como "arte de exprimir o pensamento por meio de gestos", mas também a arte de imitar, de fingir, de tentar reproduzir através da estática, do movimento do ritmo, instante fugazes, fenômenos da natureza, sentimentos, Ricardo Bandeira, 42 anos, 27 de vida artística - único mímico do Brasil, é um artista único em seu trabalho, um lobo solitário mas profundamente consciente. Conheço e admiro Ricardo Bandeira há mais de 12 anos, quando esteve aqui, pela primeira vez, mostrando um inédito método de ensino de inglês pela televisão, por mímica, se não me engano com patrocínio do Yazigi. Depois voltou para tumultuadas temporadas, época em que atravessava séries crises - mas que não invalidaram, jamais, a sua arte - que aprendeu com Marcel Marceau - o maior mímico de todos os tempos, mas que soube desenvolver sozinho e, apesar de suas tentativas não encontrou seguidores no Brasil. Agora Ricardo Bandeira retorna a Curitiba. Mais maduro, tranqüilo - embora a mesma extraordinária personalidade elétrica (zante), capaz de entusiasmar a qualquer pessoa que respeite a inteligência, o talento, a criatividade, e principalmente a consciência, o amor e a liberdade ao ser humano. No auditório Salvador de Ferrante do Teatro Guaíra, hoje e amanhã, as 21 horas, estará apresentando "Eu! Ricardo Bandeira", espetáculo que no ano passado (12/9-8/10/78) foi levado na Sala Funarte, no Rio e depois vem sendo apresentado em outras cidades. As 15 horas, de hoje, Riacrdo faz um espetáculo diferente, destinado ao público mais aprecia: as crianças e para quem dedica seu quarto livro, "uma trilogia num único volume", com 3 títulos dos mais curiosos: "Estórias para crianças que os adultos devem ler escondidos/Estórias para jovens que os adultos devem ler com atenção/Estórias para adultos que as crianças devem ler com urgência". Trata-se de uma obra que merece as mais longas análises mas também é simples e bela como uma flor: são 38 textos, antecedidos da Declaração dos Direitos da Criança, assinada em 20 de novembro de 1959, na ONU. E como epigrafe, Ricardo escolheu o "artigo 3.º"do "Estatutos do Homem" do poeta Thiago de Mello: "Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra, e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro abertas para o verde onde cresce a esperança". O livro de Ricardo Bandeira (158 páginas, Editora Hamburg, a venda no hall do teatro) tem capa do paranaense Elifas Andreato e na contracapa há um belíssimo texto de Gianfrancesco Guarnieri que auxiliará a quem ainda não conhece Bandeira, a entendê-lo melhor. Relembrando 21 anos de amizade, desde que conheceu Ricardo, no Teatro de Arena, em São Paulo, em 1958, o autor de "Ponto de Partida" recorda: "Mesma juventude, mesma vontade de falar sobre as coisas, ganhar mundo, transmitir confiança, amor e certeza. Através da arte, propor, discutir, afirmar. Procurávamos nossa identidade; expressão própria nacional, brasileira. Como raiz - nosso povo; como força - a História. Olhos abertos, bem abertos, procurando aprender a realidade. Coração acalentado sonhos. Num mesmo sentido começaram a somar-se, peças teatrais, filmes, canções, poemas". Desde que Procópio Ferrante (1898-1979) deu a Bandeira sua primeira chance de pisar num palco - vivendo "Cleanto" em "O Avarento", de Moliere, este carioca do dia 11 de janeiro de 1936, nunca mais parou: fez teatro declamado, atuou em alguns filmes ("A Família Lero-Lero", "A Pensão de Dona Stela", "A Doutora é Muito Viva"), levou shows em teatros, boites, clubes e correu mundo, coleonando títulos e prêmios, como os dos festivais internacionais de teatro na Finlândia (62), Bulgária (68), Stratford-On-Avon (Inglaterra) (1970, com "Hamlet", de Shahespeare) e Mambembinho e Mambembe especial (SNT, 1977), uma biografia, curriculum e opiniões já foram publicada nos jornais da cidade, nesta semana - embora ele ttenha, em seus 42 anos, a vivência de muito mais, pois está na (rara) categoria dos artistas que se assumem totalmente, não temem quebrar a cara, e enfrentam os períodos difíceis como os melhores, com a mesma honestidade. Apesar de rever apenas rapidamente Bandeira, senti agora, nele, um entusiasmo ainda maior: ao lado do mínimo no palco, o autor de um livro da maior beleza - para ser líder e refletido por todos - há também o Bandeira cineasta, que já trouxe dois filmes - um curta, 10 minutos. "Somos uma Pantomima", já adquirido pela Embrafilmes, para distribuição no circuito comercial, e um didático, 60 minutos, onde procura transmitir tudo que aprendeu, em 27 anos de mínima. Sobre esta arte ainda tão desconhecida entre nós - e da qual é um pássaro solitário, embora mais confiante em suas potencialidades do que nunca. Ontem a noite, após seu espetáculo no Guaíra, Ricardo expôs, demoradamente, ao secretário Luiz Roberto Soares, da Cultura e Desporto, um projeto fascinante: o filme "O Menino de Nazaré" que, pela primeira vez na história do cinema, abordará apenas a infância de Cristo, num período que, até hoje, nunca preocupou os cineastas, sempre voltados a outras fases de sua vida. Ricardo já tem pronto o roteiro, diálogos e inclusive grande parte do elenco foi escolhido: ele interpretará o "homem-resistência", Eva Wilma será a Virgem Maria, Carlos Zara interpretará José , a atenção será vivida por Deborah Duarte, a Obediência será Lucélia Santos e Gianfrancesco Guarnieri interpretará o Homem Estrada ou o Homem Felicidade, Ricardo, que também dirigirá o filme, se entusiasma quando fala do projeto: está disposto a fazer uma co-produção no Paraná, por acreditar nas possibilidades de uma obra como esta, por sua universidade e oportunidade, neste Ano Internacional da Criança, atingir a platéia de todo o mundo Simbólico e comunicativo, capaz de falar aos corações de todos os homens do mundo. O "Menino de Nazaré" será, garante, um filme sem fronteiras. E escrevo que com este filme pela primeira vez o Brasil vai ganhar o Oscar de melhor fita internacional", acrescenta jurando que independente do apoio ou não que consiga, nas áreas oficiais, vai realizaá-lo em pouco tempo. E quem conhece Ricardo sabe que ele tem um entusiasmo, uma vivência do mundo, que o faz tentar as mais audaciosas experiências: afinal, quem imaginaria que apenas um ator, por mímica, pudesse fazer uma encenação de "Hanlet", premiada justamente na cidade-natal de Shakespeare, a bela Stratford-On-Avon ou, depois, pela primeira vez no mundo, reduzir a um ator, no palco, toda a grandeza de uma das mais complexas obras do mesmo Shakespeare, como foi o caso de "Ricardo Terceiro". Por isto, o nosso amigo Gianfrancesco Guarnieri foi feliz ao escrever que Ricardo há vinte e estes anos corre mundo e sem palavras conversa en tantas línguas: "Procurando sacudir-se Louco. Obstinados e louco em um tempo, em normalidade é rendição, perplexidade, cupidez, insensibilidade, repressão. Louco. Em rodopios mijando no mundo, a um tempo que meigamente procura salvar das cinzas as flores renitentes. Desagradável, por vez: duro, agressivo, cruelmente franco magoado, e, portanto, bastante só. Porque humano. Mas tão ser humano, que prossegue e prosseguirá sempre como todos que recusam a morte em vida, morte do acompanhamento, da desistência e covardia. Bandeira, Ricardo é dos que lutam, acreditam, vibram e querem construir muito mais do que máquinas, é dos que fazem disso a única e aceitável razão de ser, amplamente. Escrevendo, cantando e mimando - Liberdade". Uma artista capaz de fazer as crianças sorrir e os adultos chorar. Num palco de 600 poltronas, como no Guaíra, neste fim-de-semana, ou num estádio, frente a 60 mil pessoas, como na Rússia. Onde, após assistí-lo numa de suas apresentações, o cosmonauta Yuri Gagarin (1934-1968), o cumprimentou dizendo: - "Ricardo Bandeira, tu desvendas o homem. Minha tarefa é menor que a tua".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
1
23/06/1979

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