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Aramis

"Camorra", um filme de utilidade pública

Existe o cinema-estética, o cinema-coração assim como o cinema efeitos especiais - entre tantas classificações que críticos e ensaístas como o curitibano Lelio Sottomaior Jr. gostam de fazer. Mas há também o cinema-utilidade pública. Não apenas o filme promocional ou publicitário, realizado dentro de claro e definido prisma mercadológico, capaz de se integrar a um determinado objetivo - e então se cairia apenas no simples comercial de poucos segundos - mas aquela obra que, pela sua seriedade vem prestar um real serviço à comunidade. "Camorra", da italiana Lina Wertmuller (cine Palace Itália, 20 e 22 horas) é o exemplo do filme de utilidade pública, aqui empregando a definição que Sérgio Augusto, um dos mais lúcidos críticos brasileiros cunhou há 13 anos. Ao escrever ("Veja", 20/3/1974, página 81), sobre "O Sistema" (The Glass House, 72, de Tom Gries), vigorosa denúncia das violências carcerárias americanas, Sérgio acentuou: "em todos os sentidos, 'O Sistema' é um filme de utilidade pública, uma apaixonante (porque autêntica e sensível) lição de moral e civismo". Conservadas as devidas proporções, acredito que "Camorra" pode também merecer uma aproximação. Por mais restrições que a crítica venha a fazer a esta produção da dupla Menahen Golan e Yoram Globus, da hoje poderosíssima Cannon, um aspecto se ressalta: a importância de se denunciar o tráfico das drogas no mundo contemporâneo. Aparentemente - e até os 30 primeiros minutos finais - "Camorra" pode parecer mais um filme sobre o crime organizado na Itália - no caso a organização siciliana Camorra, de origens e ação em Nápoles, com seus cappi, negócios sujos, mortes e vinganças. Já nas seqüências de introdução, com as imagens de Giuseppe Lanci captando os cenários externos da mediterrânea cidade italiana, o espectador é introduzido num clima que já viu inúmeras vezes no cinema. A presença sensual da bela Annunziata (Angela Molina), ex-prostituta e hoje dona da pensão Broadway, prenuncia uma explosão de acontecimentos que desfilarão em crimes violentos, atingindo várias pessoas - aparentemente sem uma conexão imediata. Este clima de thriller, com assassinatos violentos e inesperados - e os mortos ficando com uma agulha espetada no órgão genital - dá, inicialmente, ao espectador a sensação de déjà vu e o leva até a indagar o que estará pretendendo uma cineasta sabidamente inquieta e contestadora ao mergulhar num filme convencional. Entretanto, uma surpresa é revelada na parte final (e obviamente, não deve ser comentada), dando o lado social e mesmo político do filme, com uma posição que mesmo sendo moralista aos que tenham idéias favoráveis à liberação das drogas, não deixa de ser profundamente coerente no sentido da necessidade e que esta maldição de nossos dias seja combatida, mesmo que com a lei do olho por olho, dente por dente. Nápoles, uma das cidades mais fascinantemente bagunçadas ao estilo italiano, em suas contradições sociais e políticas, foi captada como cenário, integrando-se à desenvoltura da trama. A propósito, a própria Lina Wertmuller declarou: "Nápoles simboliza todas as cidades do mundo: multidões, tráfego, negócios, crime, concreto e decadência. De repente, o equilíbrio da violência é quebrado por uma misteriosa série de assassinatos, crimes fora do sistema, crimes que espantam os mais frios mercadores da morte". Justamente esta cadeia de morte - e os personagens trabalhados no roteiro - uma ex-prostituta (Angela Molina), um cappo cego (Francisco Rabal), um bailarino (Daniel Ezralow), um gangster que viveu nos Estados Unidos (Harvey Keitel), formam o universo no qual o roteiro desenvolve-se de forma ágil. A Camorra, organização criminosa de Nápoles - semelhante à multinacional Mafia ou a Cosa Nostra - é apenas um dos ingredientes da trama, visto, aliás, de uma forma diferente daquela que o cineasta Giuseppe Tornatore incluiu no recentíssimo "Il Camorrista", representante da Itália no último FestRio e que quase valeu ao americano Ben Gazarra o tucano de melhor ator. Wertmuller procurou se concentrar no lado humano das vítimas do tráfico das drogas, numa empatia que mostra, mais uma vez o seu profundo feminismo crítico, do que tem dado provas em filmes que a confirmaram como uma das mais importantes cineastas dos anos 70. Satírica e social, sem porém jamais perder a feminilidade - e mesmo uma sátira cruel ao mito do macho italiano, e do que resultou ao menos duas obras-primas que a internacionalizaram - "Mimi, O Metalúrgico" (Mimi metalurgico ferito nell'onore, 72) e "Pasqualino Sete Belezas" (Pasqualino Settebellezze, 1975), ambas veículos para a consagração do ator Giancarlo Giannini, Lina, hoje aos 56 anos, tem colocado sua câmera na reflexão das relações humanas. As relações amorosas, o corte visceral na hipocrisia dos interesses no matrimônio e da sociedade, alcançaram pontos altos em filmes centrados basicamente em dois personagens - como "Amor e Anarquia" (1973), "Tudo Certo... Mas Nada em Ordem" (1974), "Por Um Destino Insólito" (1974) e "Dois na Cama Numa Noite de Chuva" (1978), por coincidência três deles estrelados por Giancarlo Giannini. O questionamento do Amor, explodindo a partir dos próprios títulos que tiveram outros de seus filmes no Brasil - "Amor e Anarquia" (originalmente "Film D'amore e D'anarchia", 1973) ou "Amor e Ciúme" (Fatto di sangue tra due uomini per causa de una vedova, 78), este exibido há menos de um ano, são outros exemplos de uma forma muito especial com que Lina, ex-assistente de Fellini no clássico "Oito e Meio" (1963) tem encarado as relações homem x mulher na sociedade - seja nas grandes cidades, na rudeza da Sicília ou numa ilha solitária como em "Por Um Destino Insólito", para nós, particularmente o seu melhor filme. Revendo-se a filmografia de Lina Wertmuller, capturando no subconsciente imagens de outros por ela realizados pode-se fazer um melhor approach deste "Camorra", uma obra contundente (e mesmo diferente) em sua linha de trabalho - mas nem por isto menos importante. LEGENDA FOTO - A dramaticidade nas faces de napolitanas em crise: Angela Molina, Isa Danieli e Annie Papa, três atrizes marcantes em "Camorra", em exibição no Palace Itália, nas sessões noturnas.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
2
18/01/1987

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