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Aramis

Canções de protestos, mas com ingenuidade

Durante pelo menos dez anos na fase mais dura da repressão na ditadura militar, os compositores de música popular deram muito trabalho aos censores. Inteligentes, criativos, não apenas os nomes mais consagrados - e logo visados (Chico Buarque, Gonzaguinha, Sérgio Ricardo e tantos outros), mas também gente nova, que surgia em festivais que pipoqueavam Brasil afora, conseguiam subliminarmente (e às vezes bem explicitamente) dizer coisas que desagradavam e irritavam os donos do poder. A abertura trouxe o enfraquecimento do gênero de protesto e, nos últimos 4 anos, só mesmo em alguns grupos de rock, com letras entre o apelativo e o humor, se ouviram críticas aos novos tempos - com liberdade política e de opiniões, mas, em compensação, tenebrosa em termos administrativos, financeiros e de corrupção. Mesmo nos festivais de MPB desapareceram as protest songs tupiniquins, o que fez com que pelo menos dois compositores que concorreram no 16º Fercapo (Cascavel, 28/30 de julho) tirassem o marasmo com letras tentando dizer aquilo que a maioria dos brasileiros pensa nestes dias tenebrosos: a irritação pela situação que faz o brasileiro se tornar cada vez mais miserável. xxx Anísio Rocha, 32 anos, de São Paulo, com o "Circo", venceu duplamente o festival - consagrado pelo público e júri oficial. Mas além de sua sátira do Brasil-88 na forma de um grande (e trágico) circo, teve também muitos aplausos com "Brasileiro Classe Média", que por pouco também não ficou entre as premiadas. Em sua letra, fala da proletarização da classe média, cada vez mais asfixiada economicamente. Brasileiro classe média, este era o meu papel Brasileiro classe média, que de tanto fazer média Tá indo pro beleléu Entra crise e sai crise É sempre a mesma reprise, o país vai melhorar Esse papo tá furado, esse filme é do passado Não dá mais pra acreditar Entra ministro e sai ministro E eu que não tenho nada com isso Recebo as contas pra pagar Desde os tempos do cruzado, quando o certo/ deu errado Eu fui fiscalizar Foram pegar o boi no pasto, fizeram tanto estardalhaço que o bichinho se assustou, mas eu tô desconfiado Na longa letra, Anísio Rocha faz outras críticas - ao petróleo, aos transportes, ao pró-álcool e, naturalmente aos políticos. No final, entretanto, resvala e coloca-se como nostálgico dos tempos do regime militar - que irritou alguns jurados e lhe custou o corte da música. Fui chamado de futuro, num tempo mais obscuro Na vida desse país, só que era diferente/ eles expulsavam a gente/ Hoje a gente tem que sair Coisas da ideologia, hoje penso quanto eu era mais feliz e não sabia xxx A mesma ingenuidade (ou seria falta de politização?) que faz Anísio Rocha terminar seu "Brasileiro Classe Média" enaltecendo os tempos da ditadura, também prejudicou a força de protesto de Cícero Jerônimo da Silva, o Ceará, da cidade de Sete Quedas, Mato Grosso do Sul - e que tem sido sempre um dos mais comunicativos concorrentes no Fercapo. Ceará em "Coisa Com Coisa" usa bem o humor crítico, dizendo: Me considero cidadão brasileiro Tenho mulher e filhos e muita conta prá pagar Minha casa ainda não fiz Meu sonho acabou junto com o BNH Tem muita gente indo embora do país Se neutralizando lá no estrangeiro Seu dotô se o senhor for reeleito, Peço que dê um jeito neste povo brasileiro Infelizmente, no último verso, Ceará também mostra nostalgia do regime militar: Antigamente no tempo da ditadura Todo mundo reclamava porque não tinha abertura Mas hoje a gente tem democracia Todo mundo fala, todo mundo chia.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
03/08/1988

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