Canções de protestos, mas com ingenuidade
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 03 de agosto de 1988
Durante pelo menos dez anos na fase mais dura da repressão na ditadura militar, os compositores de música popular deram muito trabalho aos censores. Inteligentes, criativos, não apenas os nomes mais consagrados - e logo visados (Chico Buarque, Gonzaguinha, Sérgio Ricardo e tantos outros), mas também gente nova, que surgia em festivais que pipoqueavam Brasil afora, conseguiam subliminarmente (e às vezes bem explicitamente) dizer coisas que desagradavam e irritavam os donos do poder.
A abertura trouxe o enfraquecimento do gênero de protesto e, nos últimos 4 anos, só mesmo em alguns grupos de rock, com letras entre o apelativo e o humor, se ouviram críticas aos novos tempos - com liberdade política e de opiniões, mas, em compensação, tenebrosa em termos administrativos, financeiros e de corrupção.
Mesmo nos festivais de MPB desapareceram as protest songs tupiniquins, o que fez com que pelo menos dois compositores que concorreram no 16º Fercapo (Cascavel, 28/30 de julho) tirassem o marasmo com letras tentando dizer aquilo que a maioria dos brasileiros pensa nestes dias tenebrosos: a irritação pela situação que faz o brasileiro se tornar cada vez mais miserável.
xxx
Anísio Rocha, 32 anos, de São Paulo, com o "Circo", venceu duplamente o festival - consagrado pelo público e júri oficial. Mas além de sua sátira do Brasil-88 na forma de um grande (e trágico) circo, teve também muitos aplausos com "Brasileiro Classe Média", que por pouco também não ficou entre as premiadas. Em sua letra, fala da proletarização da classe média, cada vez mais asfixiada economicamente.
Brasileiro classe média, este era o meu papel
Brasileiro classe média, que de tanto fazer média
Tá indo pro beleléu
Entra crise e sai crise
É sempre a mesma reprise, o país vai melhorar
Esse papo tá furado, esse filme é do passado
Não dá mais pra acreditar
Entra ministro e sai ministro
E eu que não tenho nada com isso
Recebo as contas pra pagar
Desde os tempos do cruzado, quando o certo/ deu errado
Eu fui fiscalizar
Foram pegar o boi no pasto, fizeram tanto estardalhaço
que o bichinho se assustou, mas eu tô desconfiado
Na longa letra, Anísio Rocha faz outras críticas - ao petróleo, aos transportes, ao pró-álcool e, naturalmente aos políticos. No final, entretanto, resvala e coloca-se como nostálgico dos tempos do regime militar - que irritou alguns jurados e lhe custou o corte da música.
Fui chamado de futuro, num tempo mais obscuro
Na vida desse país, só que era diferente/ eles expulsavam a gente/ Hoje a gente tem que sair
Coisas da ideologia, hoje penso quanto eu era
mais feliz e não sabia
xxx
A mesma ingenuidade (ou seria falta de politização?) que faz Anísio Rocha terminar seu "Brasileiro Classe Média" enaltecendo os tempos da ditadura, também prejudicou a força de protesto de Cícero Jerônimo da Silva, o Ceará, da cidade de Sete Quedas, Mato Grosso do Sul - e que tem sido sempre um dos mais comunicativos concorrentes no Fercapo.
Ceará em "Coisa Com Coisa" usa bem o humor crítico, dizendo:
Me considero cidadão brasileiro
Tenho mulher e filhos e muita conta prá pagar
Minha casa ainda não fiz
Meu sonho acabou junto com o BNH
Tem muita gente indo embora do país
Se neutralizando lá no estrangeiro
Seu dotô se o senhor for reeleito,
Peço que dê um jeito neste povo brasileiro
Infelizmente, no último verso, Ceará também mostra nostalgia do regime militar:
Antigamente no tempo da ditadura
Todo mundo reclamava porque não tinha abertura
Mas hoje a gente tem democracia
Todo mundo fala, todo mundo chia.
Enviar novo comentário