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Aramis

A cantora e o poeta. Orfandade!

Na quarta-feira, 7, chuvosa, fria e cinzenta, com a diferença de poucas horas, morreram mais dois amigos: no Rio de Janeiro, Nara Leão. Em Curitiba, Paulo Leminski. A cantora e o poeta, unidos, ironicamente, na mesma data terminal. A tristeza e a dor que chegou a muitos que os conheceram e souberam amá-los e admirá-los vem com o gosto de revolta: por que, jovens ainda - ela com seus 47 anos, completados no dia 19 de janeiro, ele com seus 44 anos, deixam este nosso mundo que fica mais triste sem eles? Necrológicos, reportagens, crônicas, transcrições das letras das músicas que Nara imortalizou e dos poemas e textos de Leminski inundam a imprensa. Afinal, foram duas pessoas que deixaram sua obra - mais do que a cantora e o poeta, personalidades de uma geração. xxx Não são mais os ídolos e mitos da geração de nossos pais que estão desaparecendo. São os nossos - nem mitos e nem sempre ídolos - mas humanamente intensos e queridos, que vão nos deixando o mundo cada vez menor. Trazendo um amargor, uma revolta interna, mesmo um desespero de se ver tantos partirem. A dor da separação dos que nos disseram alguma coisa - nas artes, na música, nos livros - e que partem já aumentam o nosso vazio. E a ausência amplia-se quando estas pessoas cruzaram em nossas vidas, foram nossos amigos. A saudade fica maior - como se houvesse um indicador capaz de precisar números dos sentimentos de perda. xxx Redação da sucursal da "Última Hora", 1962. No espaço da loja do Edifício Asa, que no início da década de 60 agrupava a melhor geração do jornalismo curitibano, um fervilhar de entusiasmo de toda uma equipe comandada por Carlos Coelho, mestre do jornalismo (e que também já se foi), uma tarde, na hora do fechamento do malote que seguiria para São Paulo (onde o jornal era impresso), apareceu Paulo Leminski. Não lembro porque veio à redação e coube a mim atendê-lo. Bastaram alguns minutos de conversa para impressionar não só a mim, mas a outros colegas que ali se encontravam. Verbalizante, falando sobre a poesia e o concretismo - uma novidade para a época, citando exemplos de arte externa, de grandes dimensões - lembro-me bem que se referiu aos muralistas mexicanos, Riviera e Orozco - Leminski ganhou mais do que uma primeira notícia na coluna ("Na Hora H") que, na época, eu editava. Ganhou já o entusiasmo dos que o conheceram - numa escalada que o faria um homem de comunicação - função que exerceu até o fim de sua vida. xxx Clube Curitibano, maio de 1964. A sucursal da "Última Hora" fechou há dois anos com o golpe de 1º de abril e escrevo então uma coluna - "MP-RM" (siglas de traduziriam "Música Popular - Revista da Mulher", suplemento de "O Estado do Paraná") a convite do amigo Xiquinho Zimerman. E nesta condição de repórter, vou ao então sofisticado Curitibano, em sua sede urbana (hoje ocupada pelas cafonas Lojas Brasileiras) no qual o Clube da Lady patrocinava o desfile de modas da Rhodia. Na época, um show fantástico e que naquele ano trazia como atração a cantora Nara Leão, famosa desde o deflagrar da Bossa Nova - musa do movimento e que mesmo até então sem ter feito ainda o seu primeiro elepê solo, já um nome famoso dos que se ligavam ao movimento rejuvenescedor de nossa MPB, pois além de no apartamento de seus pais, na Avenida Atlântica, reunir a garotada que fazia a nova música, havia participado da trilha sonora de "Ganga Zumba" (primeiro longa de Cacá Diegues, com quem casaria mais tarde) e a convite de um de seus melhores amigos, Carlinhos Lyra, gravado as faixas "Marcha da Quarta-feira de Cinzas" e "Promessa de Você", parcerias com Vinícius de Moraes e Nelson Lins e Barros, respectivamente, no histórico álbum "Depois do Carnaval" (Philips, 1963). Conheci Nara naquela ocasião e enquanto o desfile acontecia, mais do que uma entrevista foi uma conversa, tão emocionante, que não parou por aí - mas que continuou no bar do antigo Hotel Iguaçu e alongou-se num jantar no Ille de France, pois em sua generosidade, o então jovem Felipe Engler, diretor da TV Paraná - com sua namorada de ocasião, patrocinou a esticada. Lembro-me que várias vezes Nara repetiu sua decisão de escolher compositores dos morros, então ilustres desconhecidos, para o seu primeiro elepê, que Aloísio de Oliveira iria produzir na Elenco. Falou com entusiasmo de Cartola, Elton Medeiros, Zé Keti - de quem gravaria "O Sol Nascerá" e "Diz que Fui por Aí". Mesmo amiga do pessoal da Bossa Nova e admirando o preciosismo vocal de João Gilberto - então já o nome maior, Nara dizia que não queria ser apenas a musa dos compositores que falavam em flor-sol-mar. Nos compositores dos morros, apresentados por Carlinhos Lyra, encontrava maior identidade social. Quando, no dia seguinte, falei ao colega Mauri Furtado (que viria a morrer afogado em Caiobá, a 8 de dezembro do fatídico e desgraçado ano de 1964), ele que tinha restrições a Bossa Nova (assim como João Féder, então secretário da "Tribuna do Paraná"), disse: - "É. Assim ela vai começar a cantar a verdadeira música brasileira". A entrevista com a Nara acabou não saindo e aquilo que poderia ter sido um furo local acabou sendo prejudicado. Algumas semanas depois, a então famosa revista "Fatos & Fotos" abria quatro páginas para uma matéria de Ronaldo Boscoli com o título - "Nara rompe com a Bossa Nova", na qual repetia tudo que havia dito semanas antes. xxx Um quarto de século de caminhos e descaminhos em que todos envelhecemos. Leminski tornou-se um nome polêmico na vida intelectual curitibana, foi o primeiro a defender a poesia concreta entre nós e nas poucas páginas do suplemento "Vanguarda", que saiu do "Diário da Tarde", no curto período (também em 1964), em que Fernando Miranda (hoje diretor da Portobrás) e Constantino Viaro (hoje superintendente da Fundação Teatro Guaíra) ali estiveram, pude coordenar - Leminski teve seus primeiros espaços. Fato que sempre reconheceu, mesmo depois que se tornou um nome nacional - com livros publicados e grande destaque nas mais importantes publicações. Poliglota, professor, publicitário, tradutor, antes de tudo um poeta antenado com a vanguarda, Leminski se transformaria no nome-mito, num símbolo de rebeldia e intelectualismo para a geração dos anos 70/80 - que hoje deve sentir-se numa orfandade. xxx Coincidentemente, Nara Leão, com sua linha personalíssima de intérprete sensível e segura de músicas com conteúdo e mensagem, seria uma imagem de símbolo-resistência nos anos mais duros de repressão ditatorial na música brasileira. Comparada a Joan Baez ("eu a vi uma vez em Paris, num show, mas não tive coragem de me aproximar", nos diria há muitos anos), com coragem suficiente para virar a mesa num Festival Internacional da Canção e promovendo a premiação da vanguardista "Cabeça" de Walter Franco (filho do deputado comunista Cid Franco), enfrentar a ira de militares, Nara seria vista, por muito tempo, como uma espécie de guerrilheira sonora - uma correspondente feminina de seu amigo Chico Buarque, de quem seria a intérprete dos primeiros sucessos a partir de "A Banda" (1966). A garra que deu a "Opinião" do maranhense João do Valle - também incluída no seu primeiro elepê (e depois de seu segundo disco), a levaria aos palcos do pequeno teatro na Rua Siqueira Campos, no Rio de Janeiro, ao lado de Zé Keti e João do Valle, direção de João das Neves, para o espetáculo que marcaria a primeira manifestação de resistência ao golpe de 1º de abril (posteriormente, faria, por algum tempo, "Liberdade, Liberdade", 1965, show de Flávio Rangel e Millor Fernandes, no qual participava também Paulo Autran). Uma longa e admirável biografia, sonorizada em mais de vinte elepês - todos conscientemente verde-amerelos, mesmo quando distante do Brasil (só em 1971, quando morava em Paris, revisitou os clássicos da Bossa Nova em "Dez Anos Depois", um álbum retrospectivo no qual teve apoio da violonista Tuca / Valeniza Zagni da Silva, falecida em 1978). A audição da obra de Nara Leão - toda na Polygram, gravadora da qual jamais se afastou - é uma espécie de roteiro para entender a integridade, profundidade e consciência de uma intérprete que jamais fez concessões a modismos e as regras de marketing do mercado - e que por isto mesmo sempre teve um público fiel, a cada ano aguardando o seu novo elepê e lotando os locais em que se apresentava. xxx Muitas lembranças ocorreriam de Nara Leão em suas várias vezes que veio a Curitiba. Por exemplo, em setembro de 1973, quando o Teatro Paiol era um grande centro musical, ali apresentou-se com um quarteto que não se reuniria hoje nem com cachê de milhares de dólares: Wagner Tiso nos teclados, Novelli no baixo, Chico Batera e o percussionista Naná Vasconcelos. Nara, modestamente, com toda sua ternura, apresentava um estreante, um tímido cearense chamado Fagner. E juntos abriam o show cantando "Penas do Tiê". Foram três noites no Paiol, casa quase cheia e um prejuízo enorme para Benil Santos, que produziu a temporada. xxx A Nara cantriz em "Quando o Carnaval Chegar", dirigida pelo então seu marido Cacá Diegues, no sufoco da repressão (1972), ao lado de Maria Bethânia, lembrando as irmãs Carmen e Aurora Miranda na marchinha "As Cantoras do Rádio". A Nara, com seu penteado tão próprio, minissaia - de onde veio o culto aos seus joelhos - o ar de eterna menina-moça que manteve até o final de sua vida - e que, mesmo já doente, fazia suas apresentações. Em novembro do ano passado, uma temporada num teatro da periferia do Rio, "para cantar junto as pessoas mais simples", como nos disse na ocasião. xxx Madrinha morena de nossas colunas musicais, amiga e imagem de sonhos de juventude. Nara nos deixou - no mesmo dia em que partiu Paulo Leminski, que, quando de nossa última conversa, falava de projetos amplos para este ano. Todos nós ficamos órfãos mais uma vez nesta semana! xxx P.S.: estou cansado de escrever necrológicos de pessoas queridas. LEGENDA FOTO - Nara: lembranças da madrinha morena.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
09/06/1989

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