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Aramis

Cartas

Antônio Bittencourt Ferreira (Bela Vista do Paraíso) - "O vovô trabalhava na roça. Puxava enxata, mas gostava mesmo era de tirar leite de vaca. A tiração de leite o vovô fazia de graça porque gostava. Quando o patrão, por brincadeira, dizia que ia colocar outro tirador de leite o velho dava o estrilo. Quem sabe falar com a Mansinha é só eu. Tem dia que a bichinha está de veneta e esconde o leite. Faço uma cocega na barriguinha dela, digo umas coisas e a veia estufa e logo desce o leite. O vovô conhece todas as crias da Mansinha. Nenhuma morreu. A primeira é vaca de leite no sítio Água Rasa. A outra no Fundão. Tem um tourno que dá gosto de ver e é filho da Mansinha. Quando a filha do vovô ficou doente a Mansinha sofreu e deixou de dar leite. A cria precisou ser alimentada em mamadeira. Vovô levantava de manhã e dava leite na boca do nené. O nené corcoviava e não deixava pegar fácil. Vovô era mais esperto e grudava o pescocinho do animal. Era vermelhinho. Depois de alimentado o vovô soltava o bezerrinho no pasto e ficava de espreita segurando o arame da cerca. O bezerro corria, pulava e fazia mil traquinagens. Esfregava o pelo na grama cheia de orvalho, levantava-se, sacudia o couro e uma verdadeira chuva caia em cima do vovô. O vovô corria, chutava a grama, pedra e tudo que encontrava. Era a alegria bucólica do vovô. "Mansinha morreu de madrugada. O frio era intenso. A Mansinha já não andava muito boa. O patrão havia consultado um veterinário sobre o estado de saúde de Mansinha e o facultativo foi categórico: não tem cura. A Mansinha morreu de doença e de frio. O vovô sofreu. Achava-se culpado do infortuno de Mansinha. Morrer uma vaca daquelas, isso nunca. Não podia. Vovô largou do curral. Largou do sítio. Deixou o emprego na roça. "Vovô reside numa água furtada. Água furtada é um telhado roubado de outro e quase não é telhado. Se vovô dormir de cumprido fica com os pés para fora. Vovô gosta da casa. Nos fundos tem um abacateiro e nele dormem pardais. Ao amanhecer o dia os pardais ficam alvoroçados e o vovô gosta do barulho. Sai, lava a cara na bacia e enxuga o dedo indicador com a água entre as bochechas e arranca da cavidade bucal os resíduos de alimentos. "Encaminhei a papelada do vovô por duas vezes no Funrural. Completamente negativo. O vovô mora na cidade. O vovô não trabalha na roça. Que importa que o vovô viveu uma vida inteira na roça? Que importa que o vovô tenha ficado sozinho, sem uma viva alma por ele? Que importa que o vovô com sacrifício vá de um lado para outro afim de arrumar os papéis, mancando, trôpego pela idade e pelas ulceras nas pernas? O papel falou tá falado. Vovô não pode ser aposentado".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Panorama
1
18/04/1973

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