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Aramis

As cenas da coragem nos tempos escuros

Em 1982, a décima segunda edição do Festival do Cinema Brasileiro de Gramado ganhou as manchetes da imprensa nacional - e não apenas dos cadernos de espetáculos que normalmente cobrem o mais famoso de nossos festivais. É que Roberto Farias, que um ano antes havia deixado a presidência da Embrafilme (para a qual foi levado quando Ney Braga assumiu o Ministério da Educação e Cultura) escolheu para sua volta ao cinema, um tema que foi um teste para a abertura lenta e gradual que o então presidente Ernesto Geisel ensaiava: "Prá Frente, Brasil", denunciando a tortura e repressão no governo Médici foi uma explosão no Festival, O júri estava disposto a dar ao filme todos os kikitos mas as pressões foram tão grandes que só foi possível premiá-lo como melhor filme e montagem (Roberto Farias / Mauro Farias). As consequências foram imediatas: o filme foi proibido de exibição (só seria liberado um ano depois) e o substituto de Farias na Embrafilmes, o diplomata Celso Amorim, demitido imediatamente. Afinal, a Embrafilme havia coproduzido o filme - que surgiu com a mesma força com que o grego Costa Gravas havia realizado "Z", em 1968, denunciando o regime militar da Grécia. A disposição hoje em vídeo e já apresentado por duas vezes pela televisão, "Prá Frente, Brasil" mantém sua atualidade e, especialmente, coragem - surpreendente, considerando-se que até então Roberto Farias não havia proposto vôos mais audaciosos em termos políticos, ao contrário tendo até dirigido filmes "estrelados" por Roberto Carlos e o piloto Emerson Fittipaldi. De 1964 a 1982, o cinema brasileiro - dentro de suas possibilidades, tal como na música, foi um símbolo de resistência democrática, enfrentando a Censura para tentar passar mensagens menos ou mais explícitas capazes de denunciar o longo período de arbítrio militar que havia se instaurado em primeiro de abril de 64. Um tema ainda insuficientemente estudado e que tem, até agora, a sua análise mais profunda em "O Cinema Dilacerado" de José Carlos Avellar (Editora Alhambra, 1985, 382 páginas). Um dos mais profundos críticos de cinema, atualmente assessor na Fundação do Cinema Brasileiro, Avellar fez em seu livro um estudo em profundidade - enfocando "diferentes modos de ver, viver e pensar que organizaram os filmes de (um pouco antes de) 1968 até (um pouco depois) de 1978". Assim, sem pretender ser definitivo - mas exaustivo e competente no período abrangido - "O cinema Dilacerado" é o primeiro grande estudo do cinema político no Brasil, que conta com outros títulos não referendados por JCA. Há até um mártir do cinema político nacional, o baiano Olney São Paulo (7/8/1936 15/2/1978), cuja morte, há dez anos, foi conseqüência das torturas que sofreu na prisão após ter realizado "Manhã Cinzenta", longa-metragem documentando a repressão militar e que praticamente nunca teve exibição normal - mas que agora consta de uma retrospectiva de sua obra que poderá ser trazida a Curitiba no próximo ano. Direta ou indiretamente, dezenas, de cineastas brasileiros (e nisto incluindo-se também roteiristas, fotógrafos, técnicos etc.) deram, cada um de sua maneira, suas contribuições ao cinema político, desde curtas metragens até longas que conseguiram furar o bloqueio da Censura (e mesmo o veto declarado militar) e chegar aos festivais internacionais - enquanto continuavam malditos e perseguidos no Brasil. Estranhamente, enquanto na Argentina os cineastas continuam a tocar em temas políticos - e um exemplo disto é o belíssimo "Sur", de Fernando Solanas (uma espécie de "Tangos: O Exílio de Gardel", segunda parte), entre nós, o enfoque de denúncia - tão necessário - da ditadura parece ter esmorecido. É bem verdade que se "Prá Frente, Brasil" conseguiu uma grande repercussão, outros filmes políticos pasaram despercebidos: "Paula, a História de Uma Subversiva" de Francisco Ramalho - praticamente nem chegou a ter uma exibição comercial regular, enquanto "O Bom Burguês", de Osvaldo Caldeira - rodado logo após "Prá Frente, Brasil", mesmo com uma estrela global na cabeça do elenco (Betty Faria) - e baseado em fatos reais - foi um total fracasso de público. Falar em exemplos de filmes políticos exigiria um espaço imenso - para não cometer injustiças com tantos realizadores honestos e dignos em sua coragem de, entre 1964/82, enfrentando além de todas as dificuldades de produção e de um mercado que ainda penaliza o nosso cinema, tocaram o dedo (ou a câmara) na ferida. Como lembrou José Carlos Avellar, na introdução de seu "O Cinema Dilacerado", no ano que precedeu ao golpe militar, três clássicos do nosso cinema já continham elementos políticos, cada um à sua maneira: "Os Fuzis", "Vidas Secas" e "Deus e do Diabo na Terra do Sol". O primeiro, de Rui Guerra, o segundo de Nelson Pereira dos Santos e o terceiro de Glauber Rocha - estrela fulgurante que três anos depois, viria a realizar a épica parábola "Terra em Transe", enquanto Nelson Pereira dos Santos, integrante do PC em sua juventude em São Paulo, jamais deixou de colocar propostas políticas em seus filmes - mesmo quando em temas aparentemente distanciados da realidade brasileira, usava o simbolismo - ou chegando ao delírio total em "Quem é Beta?" (1974) ou "Fome de Amor", este justamente realizado naquele explosivo ano de 1968 - e cujos últimos diálogos pronunciados por Leila Diniz e Paulo Porto eram intencionalmente incompreensíveis porque continham mensagem política. Na longa crônica do cinema proibido e perseguido - com filmes como "Prata Palomares", de André Farias (cineasta que passou os últimos anos em Curitiba, trabalhando em cinema publicitário) definitivamente afastado das telas - há toda uma outra história de nosso Cinema - e que só aos poucos vai sendo reconstituído. Hoje, com todos os filmes liberados, assiste-se a um outro tipo de Censura, talvez mais cruel e desenosta: a impossibilidade da maioria destes filmes serem vistos pela falta de programações que os aceitem e um (burro) desprezo de um platéia mais jovem que, ignorante da importância da época em que cada curta, média ou longa foi realizado, se põe a fazer questionamentos estéticos e ideológicos. Estes são piores do que os mais cruéis torturadores que os tempos do AI-5 revelaram. LEGENDA FOTO - Nara: musa consciente.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
12
11/12/1988

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