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Aramis

Deserto dos adultos na flor da infância

O roteiro (Linda Remmy/ Eugene Corr) é simples, sem qualquer pretensão maior. Podem até reclamar os vanguardistas de mesa de bar que não há nada de novo. Realmente, a sensibilidade, o amor, a descoberta das coisas da vida, encontro de pessoas não foram inventadas pela geração pós-moderna, nem pelos concretistas paulistas. São sentimentos eternos. E de sentimentos eternos é que fala "Deserto em Flor" (Cinema I, até quarta-feira), um filme que pode ter pontos de encontro com muitos outros momentos também mágicos e encantadores do cinema. Para ficar apenas em exemplos recentes, lembraria "A Inocência do Primeiro Amor" (Lucas, 85, de David Seltzer), um dos 10 melhores lançamentos de 1986 e que só em São Paulo teve a justa repercussão. Como em "Lucas", neste "Deserto em Flor" a ação é conduzida pelos olhos de uma adolescente, a menina Rose, 13 anos (Annabeth Gish, será neta ou bisneta da grande Lilian?), numa pequena cidade americana. No caso é Las Vegas, anos 1950/51. Uma Las Vegas que, pela primeira vez, aparece em seu lado humano, no bairro residencial, sem os neons, os anúncios luminosos, os cassinos milionários, a sua vida noturna que nunca acaba. Ao contrário, aqui é a Las Vegas humilde, de um bairro pobre na história de uma família simples, de gente como a gente - numa empatia universal. Jack (Jon Voight), proprietário de um posto de gasolina, "o últmio antes do deserto de 600 km", como diz Rose no início da narração, é um atormentado veterano da II Guerra Mundial. Mancado, devido a um ferimento, passa o dia no posto e, à noite, ouve pelo rádio poderoso que montou, notícias captadas inclusive de unidades militares - que instaladas no deserto de Nevada, preparam experiências atômicas. Sua mulher, Lily (Jobeth Williams), trouxe de um primeiro casamento, três filhas - Rose e duas irmãs menores. Frustrado, infeliz e contraditório, Jack é um homem de reações imprevisíveis. Bebe muito, chega a ser violento, mas é um bom homem. Ao universo familiar, acrescenta-se a chegada de Starr (Ellen Barkim), ex-modelo, mulher sexy e bonita, irmã de Lily, que se torna a melhor amiga da frágil Rose. Rose é uma menina tímida, sensível, que sofre a crise de toda a adolescente e observa a sua família - a mãe trabalhando fora (primeiro num cassino, depois numa unidade nuclear), o padrasto em sua solidão, suas crises, e a tia-amiga, que lhe ensina a arte da elegância, de conquistar o primeiro namorado, da dançar a rumba. "Deserto em Flor" é universal em sua exata proporção de ampliar um microuniverso, no qual os filtros da câmara de Reynaldo Villa-Lobos funcionam como uma lente de aumento, fazendo que, mais uma vez, o velho Tolstoi tenha razão: "Se queres ser universal, fales de tua aldeia." Não chega a existir tramas, elementos de suspense e intrigas que poderiam conferir aos personagens deste "Deserto em Flor" uma dimensão mais dramática. Ao contrário, há até aquela monotonia da vida de uma pequena cidade, sempre vista no olhar da criança que começa a pensar o mundo adulto. E se a empatia de um retorno ao passado faz com que a geração acima dos 40 busque, afoitamente, toda a simbologia e fantasia fantástica de obras pretensiosas como "De Volta ao Futuro" e, especialmente, o recentíssimo "Peggy Sue - Seu Passado à Espera" (de Francis Coppola, que por sinal estava em cartaz no mesmo Cinema I, na semana passada), "Desert Bloom" vai direto ao ponto. A sua ação é toda transcorrida entre alguns meses no final de 1950, ao início de 1951 - encerrando, justamente, no amanhecer em que o Exército americano faz a primeira experiência nuclear, numa segunda fase de testes atômicos, no deserto de Nevada. O início da chamada "era atômica", a presença dos militares, assim como a Guerra da Coréia - citada sempre com insistência - formam um painel de fundo do filme. Embora a ação pouco deixe o espaço em que vive Rose - sua casa, a escola, a festa dos amiguinhos, a piscina na qual usa maiô pela primeira vez - nunca o diretor Eugene Corr deixa de mostrar o lado da guerra fria, do militarismo, do envolvimento americano na guerra da Coréia - tão envergonhada e cruel como, dez anos depois, sério conflito do Vietnã. O roteiro que Corr desenvolveu, os personagens trabalhados e todo o universo construído fazem justamente da simplicidade, do despojamento e da despretensão deste "Deserto em Flor" um filme tão especial. Não deixa de ser um dado importantíssimo saber que Linda Remy, co-autora do argumento, atuou como produtora e a realização foi patrocinada pelo Sundance Institut, que Robert Redford mantém há alguns anos para estimular projetos de novos cineastas (foi lá que Scorcese descobriu o roteiro de "After Hours"). Assim existe o clima de independência e liberdade na criação do filme, em cuja ação não se perde nunca o olhar da adolescente Rose, Eugene Corr consegue colocar, com precisão e clareza, as questões que, há 40 anos passados, marcavam tão profundamente o mundo. Década de separação de dois tipos de vida - do comportamento e conservadorismo até o pós-guerra, para uma nova realidade do mundo, separada a partir de então pela Guerra Fria, o alvorecer dos anos 50 tem sido, até com insistência, revisitado por autores de diversas tendências. Justamente por concentrar sua ação num microuniverso, em que a criança normal - com todas as dúvidas, inquietações, mas também esperanças -, é a narradora da história, é que "Deserto em Flor" ganha este significado especial. Numa narrativa que cobre 42 dias, nos quais a exuberante Starr se estabelece na residência de Jack e Lily - e tem seus envolvimentos amorosos (já mais explícitos) e intervém no pequeno mundo de Rose -, o espectador mais sensível também pode viajar ao seu tempo, a sua infância, nesta empatia que faz do cinema um entretenimento (quando arte) tão envolvente. "Peggy Sue" leva o olho/sentimento à sua pequena cidade em 1962. Rose é mais direta: na primeira seqüência, localizando o ano (1950) e o local (Las Vegas, então uma pequena cidade à beira do deserto) já está dentro daquele território tão imenso e eterno em nossas existências - mas que ao mesmo tempo cabe num atômico neurônio. "Deserto em Flor" é perfeito em todos os aspectos: na concepção, nos personagens, no ótimo elenco reunido, a fotografia de Reynaldo Villa-Lobos - captando nos filtros de sua câmera as nuances de uma Las Vegas diversa da alucinante visão dada, por exemplo, por em "No Fundo do Coração" ("One From The Heart"), de Francis Ford Coppola. A trilha sonora de Bones Howe não poderia ser melhor: a simples união de músicas da época, referencial já básico na ação, acrescenta-se uma música-fusão suave e ajustada. Tão suave quanto o designer de introdução aos créditos, que antecipa a beleza do filme que o público verá. Aliás, um último detalhe: a primeira seqüência mostra Rose num oftalmologista e seu olho aparece em close. É o recado que Eugene Carr deixa bem claro: a visão dos adultos na sensibilidade de uma criança que está se transformando em adolescente. E como eles sabem ver o mundo melhor!
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
17
19/05/1987

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