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Fagner, a trajetória de um trabalhador musical

A propósito do novo álbum de Miles Davis, falamos de artistas que sempre buscam uma (re)atualização e não se satisfazem com os louros conquistados. Uma inquietação que nem sempre é devidamente absorvida, pois embora o público, especialmente o jovem, aprecie as inovações, nem sempre as entende devidamente. O cearense Raimundo Fagner Cândido Lopes (Orós, 13/10/1950) é o exemplo do artista-mutante. Isto porque, desde quando surgiu artisticamente, em termos nacionais, lançado por Nara Leão num show que teve, justamente, uma temporada curitibana no Paiol (hoje um teatro esquecido e desativado pela administração municipal), Fagner não aceitou permanecer sobre um mesmo círculo, numa mesma esfera. Ao contrário, nestes 16 anos de carreira profissional - considerando sua aparição no Festival do Centro de Estudos Universitários de Brasília, com "Mucuripe" (com Belchior) e "Manera Fru-Fru Manera" (com Ricardo Bezerra), Fagner colecionou amigos e inimigos, nunca fez concessões mas, em compensação, têm sido um dos compositores-intérpretes mais atuantes também na produção. Graças ao seu prestígio na CBS - gravadora que chegou após a sua estréia na Polygram (onde, no primeiro lp, lançava o maravilhoso "Penas do Tiê", que Nara Leão também gravou com rara felicidade), encontrou condições de realizar trabalhos dos mais diversos, responsável inclusive pelo lançamento de muitos talentos hoje nacionais - como Amelinha, seu ex-marido, Zé Ramalho da Paraíba - ao lado de álbuns históricos, como os dois gravados pelo cantador Patativa do Assaré. Uma prova da visão que Fagner sempre teve, em seu lado de produtor: Naná Vasconcelos, que em 1971 o acompanhava em shows (e que inclusive veio a Curitiba no Paiol), hoje é um percussionista reconhecido internacionalmente, especialmente por seus trabalhos com Egberto Gismonti. Em 1973, foi Fagner quem produziu seu primeiro (e único) lp feito no Brasil, histórico "Amazônia" (Philips). Internacionalmente, Fagner abriu sua carreira para o Exterior, buscando identificações da música de raízes nordestinas com a da Península Ibérica, nascendo assim parcerias incríveis com guitarristas do flamenco como Pedro Soler (que, graças a ele, ficou conhecido no Brasil) e do grande mestre Pepe de La Matrona. Projetos audaciosos, como um álbum reunindo o poeta espanhol Rafael Alberti, Paco de Lucia e Mercedes Sosa (CBS, 1983) também foram desenvolvidos por Fagner, ampliando sempre o seu repertório e ação. Assim, independente de suas limitações como cantor - uma voz dura, acre, desagradável para muitos - e comportamento pessoal, com uma agressividade que lhe tem custado caro, Fagner desenvolve carreira das mais fortes. Buscando parcerias póstumas - seja com Cecília Meireles (1901-1964), numa aproximação que inclusive lhe custou irritado processo de suas herdeiras, ou revelando trabalhos de desconhecidos poetas portugueses, como da dramática Florbela Espanca (1), Fagner não pára em seus vôos intelectuais. Tanto é que transferindo-se para a RCA, neste seu novo elepê (dezembro/86) aparece com um novo parceiro - nada menos do que o respeitável e admirável Affonso Romano de Sant'Anna, que teve seu poema "Os Amantes" musicado por Fagner, com arranjos, regência e presença na guitarra de Robertinho do Recife - aliás, um dos nordestinos que foram projetados em produção de Fagner. Dentro de um ecletismo sem fronteiras, Fagner recorre desde aos Gonzagas - o velho Luiz em "Sabiá" (parceria com Zé Danças), em participação especial, o filho Gonzaguinha no "Forró do Gonzagão", os também nordestinos Geraldo Azevedo/Fausto Nilo em "Dona da Minha Cabeça", Dominguinhos e Clodô em "Promessa", ou a dupla Liseu Costa/Fausto Nilo em "Lua de Leblon". Com outro poeta bastante musical, o maranhense Ferreira Gullar, é "Rainha da Vida", enquanto sem parceria e com um arranjo convencional do tecladista Lincoln Olivetti ficou "Telefone". Numa audácia corajosa, homenageando seu conterrâneo erudito, gravou "Cantigas", de Alberto Nepomuceno (Fortaleza, 1864-Rio de Janeiro, 1920), com letra de dona Branca Colaço, em que o maestro Isaac Karabitchevsky rege uma grande seção de cordas. E, para completar a geléia geral, até um velho sucesso de Roberto Carlos, ganha uma nova leitura: "Como é Grande o Meu Amor Por Você" ficou suave e bonito no arranjo de Chiquinho de Moraes, com quase 30 cordas eruditas, flautas, mais o violão de Manasses e a guitarra de Robertinho do Recife. Nota: (1) Em 1982, Fagner revelava a dramática poesia da portuguesa Florbela Espanca, musicando "Tortura" e "Fumo".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
7
18/01/1987

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