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Aramis

Gismonti, Hime & Bosco

Há trabalhos musicais que chegam ao público com grande rapidez e facilidade, consagrando em pouco tempo os seus autores. Outros exigem maiores períodos, até serem convenientemente absorvidos e entendidos - tendo, muitas vezes, que percorrer caminhos internacionais, com o reconhecimento lá fora, até encontrarem do público brasileiro a atenção merecida. Um exemplo maior disto é Egberto Gismonti, 36 anos, fluminense de Carmo, 12 anos de carreira profissional, que passou anos sendo admirado por um mínimo círculo daquilo que se poderia chamar de "iniciados", enquanto seu prestígio crescia na Europa e Estados Unidos. Por falta de espaço não vamos nos estender a respeito de Gismonti, instrumentista (principalmente), compositor e vocalista (quando necessário), hoje um dos brasileiros de maior prestígio no mercado internacional, ao ponto de um de seus lps, "Dança das Cabeças" (que a Odeon lança neste mês), gravado na Noruega, com o percussionista Nana, ter sido considerado pela revista "Melody Maker", dos EUA, como o melhor álbum aparecido naquele país em 77. Cada disco de Gismonti - justifica longos ensaios, pois a sua criatividade não se esgota na duração de uma faixa - e, isto sim, adquire uma permanência maior. "Carmo" (Odeon, XEMCB-7026), lançado no final do ano passado, é, em relação a "Dança das Cabeças", um disco bem mais aberto. No álbum que gravou em Oslo, há quase dois anos, Gismonti tecladista, flautista, violonista, arranjador, desenvolveu um trabalho free, extensamente experimental - quase que para dar ao percussionista Nana Vasconcelos (respeitado internacionalmente, mas com um único lp no Brasil: "Amazonas", Philips 74) a oportunidade de mostrar tudo que ele é capaz de fazer com uma parafernália de instrumentos, muitos por ele próprio desenvolvidos. "Carmo", homenagem nostálgica a sua cidade, com familiares fotos enfeitando as páginas internas do álbum, é um disco onde sem deixar de mostrar que realmente pertence [àquele] triângulo iluminado da maior voltagem (as outras duas pontas chamam-se Milton nascimento e Hermeto Pascoal), Egberto oferece uma coleção de músicas que vão da simplicidade de um "Baião Malandro" ao "Hino do Carmo", de autoria de seu tio, Edgar e Antônio Gismonti, mestres e músicos da ingênua banda local - primeira e saudável influência em sua vida. Amigas de sensibilidade, participam do disco, emoldurando com suas vozes, as faixas onde há letras do parceiro Geraldo Eduardo Carneiro: Wanderléia ("Educação Sentimental"), Joyce ("Apesar de Tudo"), Marlui ("Calypso") e até a extraordinária Christiane le Grand, do Swingle Singers e Les Double Six, em "Cristiana" - esta faixa sem letras, apenas com o "Scat", "Raga" e "Bodas de Prata" são outras faixas instrumentais em que sente-se toda a força de Gismonti, não só como instrumentalista mas arranjador (em quatro faixas, "Apesar de Tudo", "As Primaveras", "Carmo / Hino do Carmo / Ruth", houve a colaboração inestimável de Gaya). O disco de Gismonti não é apenas um álbum indispensável a quem acompanha a música brasileira. É um documento do som mais importante, criativo, desenvolvido por um múltiplo instrumentista (executa piano, viola, violão, sintetizadores, kalimba), amparado a cobras como Luis Alves e Valdecir (baixos), Robertinho (bateria, percussão), Neném (cuíca), Mauro Senisse (sax sopranos) mais secções de cordas e 8 flautistas, incluindo até o veterano Copinha. XXX Filho de uma das famílias mais ricas do Rio de Janeiro, educado nos melhores colégios, múltiplos cursos no exterior, Francis Hime apareceu na música brasileira como parceiro de Vinícius de Moraes, em plena fase Bossa Nova. Depois, reaparecia amparando Chico Buarque em alguns de seus melhores momentos ("Atrás da Porta", 71; "Caros Amigos", [76)], só para citar exemplos maiores. Um único lp, na Odeon, feito há meia dúzia de anos e um discreto trabalho, assumido em termos profissionais apenas nos últimos anos. Entretanto, quem procura saber das coisas da MPB, sabia da força criativa e harmônica de Francis Hime, já com uma respeitadíssima obra. No final do ano passado, finalmente, pela gravadora de maior força promocional do País - a Sialg / Som Livre, saiu do seu segundo lp, "Passaredo" (Som Livre, 4036139), que amparado na intensa veiculação que vem tendo, via Rede Globo de Televisão, por certo fará com [que] este disco atinja um público bem mais amplo. Para nós, "Passaredo" está entre os melhores discos editados no ano passado. Mais do que isso, é um disco produzido com toda calma, tranqüilidade (e nisto a colaboração da esposa e musa, Olivia, foi grande), onde Francis pode incluir 13 composições, com parceiros dos mais competentes mostrando toda sua versatilidade. Francis não é, nem pretende ser, um cantor. É o autor que "diz" as músicas, de forma suave, intimista, cameristicamente - como na melhor fase da Bossa Nova. O que ele é, isto sim, é um extraordinário pianista e criador de harmonias, desenhando notas do maior colorido, fazendo com que seus parceiros possam completar com as palavras perfeitas. Seria desonesto destacar qualquer faixa deste lp, pois todas são de uma imensa beleza - das conhecidas, já de várias gravações (como "Passaredo") as inéditas. Todas são perfeitas, cada uma teve uma gravação estudada, com a participação de músicos amigos, colaboração de vocais da esposa Olivia e do amigo Chico, resultando, afinal, num álbum perfeito, ao qual é desnecessário acrescentar adjetivos. Basta ouvi-lo. Com Chico Buarque, Ruy Guerra, Paulo Cesar Pinheiro, Vinícius de Morais e Olivia, Francis fez o lp que todos esperavam. Nem poderia ser diferente. XXX Havia muita expectativa em torno do último disco de João Bosco / Aldir Blanc. "Tiro de Misericórdia" (RCA, 103.0228), foi recebido com restrições, críticas positivas e negativas - e um pouco de incompreensão por parte do público. mesmo não querendo, o disco refletou um período já difícil na parceria com Aldir Blanc, de quem a separação foi inevitável. Quem esperava um disco de músicas populares, facilmente assobiáveis e conquistando as paradas de sucesso - como vinha acontecendo com os trabalhos da dupla nos últimos 3 anos - decepcionou-se. Isto porque as músicas de João / Aldir selecionaram para este quarto lp embora conservando a ironia, a malícia, a crítica, a participação do social, as grandes virtudes de Blanc como letrista, não conseguem, [à] primeira audição, serem convenientemente assimiladas. Mas isso nem de longe invalida o trabalho da dupla e diminui os méritos de Bosco, que continuamos a incluir no primeiro time da MPB. A separação Bosco / Blanc por certo resultará em que cada um encontre novos (e felizes) parceiros, pois talento individual não falta a nenhum. "Tiro de Misericórdia" permanecerá como uma marca da separação, um disco que exige audição atenciosa, para ser devidamente compreendida. E, infelizmente, Bosco / Blanc vinham marcando sua atuação por obras de impacto, sucessos de comunicação fácil - o que, evidentemente, faz o público (e mesmo pesquisadores, como o rigoroso Luciano Lacerda) estranharem este trabalho. Pouco a pouco, entretanto, algumas faixas vão obtendo o destaque merecido: "Plataforma", "Tabelas" e, principalmente, o belo bolero - gênero que fascina a Bosco - "Bijuterias", transformado em êxito nacional por sua utilização na abertura e encerramento da telenovela "O astro". "Tiro de Misericórdia", a faixa-título, é longa, discursiva, quase um imenso bloco-texto, que lembra os primeiros trabalhos de Bosco - [Blanc], em 70/71 e que, dificilmente, será apreendida pelo público. Demais faixas: "Gênesis", "Falso Brilhante", "Tempos da Onça e da Fera", "Sinal de Caim", "Vaso Ruim Não Quebra", e "Me Dá A Penúltima". Faltou a este lp uma marcha-rancho como "Rancho da Goiabada". Mas obras-primas não se fazem todos os dias. Longe de ser o "Tiro de Misericórdia" na carreira de Bosco, ao contrário, este lp, marca uma nova tomada de posição. E continuamos a acreditar - e admirar - o seu imenso talento. Assim como o de Blanc.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Jornal da Música
Discos do Ano
37
26/02/1978

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