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Aramis

João Gilberto e a maravilhosa neurose em busca da perfeição

A história se repete. Como em junho de 1981, quando, dentro de um clima de mistério e muitos segredos, finalmente era lançado "Brasil", as páginas dos mais importantes veículos da imprensa brasileira abriram-se espontaneamente para saudar o retorno de João Gilberto ao disco. E na companhia de três outros ilustres baianos: Caetano Velloso, Gilberto Gil e Maria Bethania - num projeto que teve uma cara gestação de nove meses entre São Paulo-Rio-Nova Iorque, até atingir a perfeição que João sempre procura. Agora, há duas semanas, novamente - e com toda razão - as páginas de revistas e jornais abrem-se para saudar outro disco de João Gilberto ("Live At The 19th Montreaux Jazz Festival", WEA, 38.216/16, junho/86). Como "João Gilberto Prado Pereira de Oliveira" (Warner Bros/WEA, 36164, 1980), este novo álbum - (duplo, pela primeira vez) é a gravação ao vivo da apresentação que João Gilberto fez numa de suas raríssimas aparições. Em 1980, num especial para a Globo, dirigido por Daniel Filho. Desta vez, o registro que Claude Nobbs, diretor do Festival de Montreaux, Suíça, fez na noite de 18 de julho de 1985, quando João ali se apresentou. "Brasil" havia sido gravado em estúdio, dentro de todo o perfeccionismo que é exigido pelo mais importante dos cantores brasileiros de todos os tempos. São onze elepês em trinta anos de carreira, excluindo-se as raras gravações em 78rpm do grupo "Garotos da Lua", onde, em 1953, ele substituiu a outro baiano, Jonas Silva - dono da etiqueta Imagem (1). Entretanto, nenhum outro artista brasileiro teve tanta importância para a música brasileira a partir dos anos 60 quanto este baiano de Juazeiro, nascido a 10 de julho de 1931 e que foi o divisor absoluto da MPB a partir de sua história gravação de "Chega de Saudade" e "Brigas Nunca Mais", num 78rpm da Odeon, que um diretor de vendas da fábrica, em São Paulo, quebrou, enfurecido, classificando-o de "porcaria". Poucos meses depois, as correntes mais ligadas a música começavam a notar aquela inovação de voz e violão e a Bossa Nova acontecia no crepuscular 1959. O Brasil do final do governo Kubistschek, da implantação da indústria automobilística, do cinema Novo. Hoje, 27 anos depois, muita coisa mudou - e não é por coincidência, que nos ventos liberalizantes de uma Nova República, que trouxe ao menos a liberdade política, volta-se a ouvir não só João Gilberto, mas todo um reflorescimento da Bossa Nova - como a revista "Veja" destacou na semana passada - e que vai dos ingleses - Style Council, Sade, Matt Bianco, o grupo Everyting But The Girl, surgidos nos últimos dois anos - a uma nova geração de cantores no Brasil, entre as quais a excelente Leila Pinheiro e Eliete Negreiros, como mostram em seus elepês lançados pela Polygran e Copacabana, respectivamente - sem falar na homenagem clara e assumida que o tiête maior de João, o também baiano Caetano Velloso, faz em seus "Totalmente Demais" (Polygran, junho/86), no qual dispensou seus músicos e, somente com o seu violão, retoma a melhor condição de cantor suave e enternecedor. JOÃO, UMA ENCICLOPÉDIA - Já está mais do que na hora de o Departamento de Música Popular do Instituto Nacional de Música da Funarte agendar (atenção Hermínio, aqui fica o meu voto) o nome de João Gilberto para tema do projeto Lucio Rangel de Monografias. Afinal, ainda inexiste uma obra interpretativa de toda importância de João Gilberto na MPB - especialmente da transformação que trouxe na batida do violão e na forma de cantar. Admita-se que Mario Reis (1907-1981) há 50 anos já dava o grito de independência dos cantores, ao provar que não era necessário o vozeirão de Vicente Celestino (1894-1968) para dar a emoção nas canções, mas foi João - primeiro como violonista (acompanhando a Divina Elizeth Cardoso em "Canção do Amor Demais", 1959) (2), depois, como cantor, que melhor identificou todo o movimento de renovação de nossa música que, em 1962 (3) chegaria aos Estados Unidos, a partir do histórico concerto no Carnegie Hall. Não foi sem razão que a "Down Beat" - bíblia do jazz - admitiria que em 40 anos nada influenciou tanto a música americana como a Bossa Nova - leia-se João Gilberto. Não há espaço nem condições para falar do enciclopédico João - sua vida, sua carreira, o folclore que o cerca - mas pode - e se deve - lembrar que cada vez que acontece uma oportunidade de se ouvir suas gravações, seja num estúdio, seja ao vivo - nas cada vez mais raras apresentações que faz - deve-se agarrá-la com unhas e dentes. Como acontece agora, nesta gravação ao vivo feita em Montreaux no ano passado. Pode-se dizer que João Gilberto grava sempre as mesmas músicas por exemplo, das 15 faixas deste álbum duplo, há poucas canções que não tinham sido registradas em seus discos anteriores - entre elas "Preconceito" (4), "Sem Compromisso" (Geraldo Pereira/Nelson Trigueira), e "Pra Que Discutir Com Madame" (Janete Almeida/Haroldo Barbosa). Mas assim como os cineastas mais sensíveis como Fellini, Bergman ou Woody Allen volteiam sempre em torno da mesma temática, João, em seu esmero vocal, em seu capricho, em sua pureza de voz - e especialmente na divinamente maravilhosa neurose de perfeccionismo - busca sempre aquela interpretação definitiva fazendo com que se chegue às lágrimas ao ver que, quase 30 anos depois de seus primeiros elepês, consegue dar a sonoridade única a "Tim Tim Por Tim Tim" ou "Adeus América", da dupla Haroldo Barbosa/Geraldo Jacques); "A Felicidade" (Tom/Vinicius) - incluindo um terceiro verso nunca antes gravado, na admiração a Ary Barroso ("Sandália de Prata", "Morena Boca de Ouro", "Aquarela do Brasil"), a cinematográfica "Estate" (Bruno Martino/Bruno Brighetti) ou aos clássicos momentos da Bossa Nova - "O Pato" (Jaime Silva/Neusa Teixeira), "Desafinado" (Tom/Newton Mendonça) e "Garota de Ipanema" (Tom/Vinicius). Sim, João Gilberto é algo muito especial dentro de tudo que se refira a música brasileira! Seu comportamento, suas histórias, sua neurose maravilhosa - e sua voz e violão - únicas e definitivas, que fazem com que se veja, cada vez que ele decide abrir o baú de seu talento e dividir com os mortais a prodigalidade que Deus (que não tem dúvida que é baiano) lhe deu, só podemos ouví-lo numa forma de oração. Aliás, a música é a forma mais honesta que conheço para falar com Deus. E João Gilberto é o arauto dos deuses. NOTAS (1) João Gilberto veio para o Rio de Janeiro no início dos anos 50. Na época não era tão tímido e chegou a fazer parte de alguns conjuntos, até que substituiu ao seu amigo Jonas Silva no Garotos da Lua - grupo que até no nome imitava Os Namorados da Lua, liderado por Lúcio Alves. (2) Produzido por Irineu Garcia, pela Festa, "Canção de Amor Demais", com Elizeth Cardoso, foi o primeiro disco feito apenas com canções de Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim. Neste disco, João tocava violão, já em sua forma nova. Aliás, a gravação de Elizeth de "Chega de Saudade" saiu naquele disco - mas a que consagraria a Bossa Nova foi a de João Gilberto, lançada primeiramente em 78rpm, pela Odeon, em produção de Aloísio de Oliveira, primeiro a sentir a genialidade de João e as potencialidades de seu novo estilo. (3) O show da Bossa Nova, no Carnegie Hall, em Nova Iorque, aconteceu em novembro de 1962, em promoção que se somaram vários "padrinhos: da consulesa Dora Vasconcelos Audio Fidelity, que gravou o disco. Houve muita confusão na noite do show, que acabou sendo prejudicado artisticamente. Mas apresentava aos americanos a Bossa Nova e catipultuava a carreira de muitos brasileiros nos EUA. (4) "Preconceito" de Wilson Batista (1913-1968) e Marino Pinto, é uma das mais belas músicas dos anos 40 (foi lançada em 41), mas pouquíssimo conhecida. Este ano, no show em homenagem a Wilson Batista, direção de Túlio Feliciano (e no lp editado pela Funarte), Roberto Silva, 66 anos, relembra este clássico - agora, também na voz de João. LEGENDA FOTO 1 - "Uma afirmação difícil, arriscada mesmo, mas necessária: ainda considerando a importância histórica dos (poucos) discos gravados por João Gilberto, a cada audição fica mais evidente que este disco gravado ao vivo em Montreaux é o melhor trabalho de sua longa carreira. O que significa afirmar que é o melhor disco brasileiro de todos os tempos. Falei primeiro". (Mauro Dias, "O Globo", 19/6/86). LEGENDA FOTO 2 - "Assim como não aprendeu a conviver com a celebridade dos primeiros dias, João Gilberto também não encontrou as boas maneiras que permitam uma convivência com sua celebridade de 30 anos. Ele é, insistentemente, rotulado de difícil. Na realidade, essa dificuldade localizada em João Gilberto é a atitude mais coerente que pode existir com o tipo de música que ele sempre fez. João Gilberto é totalmente diferente de todo mundo mais que a música popular brasileira vai acumulando. Ele tem muito mais a ver com os interesses no além. Só que o além de João Gilberto é o mais complicado de todos. Ele quer alcançar o que está além da perfeição". (Telmo Martino, "O Estado de São Paulo", 18/6/86). LEGENDA FOTO 3 - "João Gilberto é a voz do Brasil. Não tanto do País do povo anônimo que decora as terras débeis dos sucessos do rádio moderno, embora saiba de cor o que ele canta. E nem tanto, também, da turma elegante e ilustrada que se difere dos iguais na garantia de que a bossa-nova voltou a ser moda avançada e, quando não era, ao menos tinha um pé no jazz, que sempre pega bem numa roda mais exclusiva". (Rosângela Petta, "O Estado de SãoPaulo", 18/6/86).
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
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29/06/1986

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