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Aramis

Jovens, cães e mestres.

Nos anos mais duros, nem mesmo oradores das turmas que se formavam nas universidades escapavam da censura prévia, sendo, muitas vezes, impedidos de pronunciar seus discursos, quando eram julgados "perigosos". Agora, apesar da abertura, a Universidade Federal do Paraná está inovando: se não consegue convencer o orador de desistir dos termos incisivos em um discurso, providencia uma resposta na hora, nem que para isso tenha que descer o nível da solenidade. Foi o que aconteceu na quinta-feira, 7, quando os formandos do curso de veterinária da UFP receberam, no auditório da Reitoria, seus diplomas. A oração da formanda Vitória Maria Montenegro Holzmann, 22 anos, mereceu por parte do reitor em exercício, professor Alsedo Leprevost, uma "resposta" que surpreendeu aos presentes levando dezenas de pessoas presentes a deixar o auditório, em protesto. Um dia antes, a oradora já havia sido "solicitada" a mudar o seu discurso, o que e com a solidariedade de seus colegas não aceitou. Xxx Vitória Maria Holzmann, que nesta semana já inicia suas atividades profissionais como uma das veterinarias aprovadas em concurso da Acarpa (e designada para uma estação experimental no municipio de Guarapuava) procurou, em seu discurso, fugir da tradicional badalação e festival de adjetivos que marcam os eventos universitarios. Assim, suas primeiras palavras já alertaram as autoridades, professores, parentes e amigos presentes de que tentaria fugir "do lugar comum e cumprir a tarefa de forma diferente". Assim, disse a oradora: "Estamos iniciando nossa vida profissional com um primeiro ato de responsabilidade, falar sempre em nome da classe repetindo verdades e tornando nossa profissão cada vez mais respeitada dentro do elenco de profissões que dividirão a responsabilidade de engrandecer nosso País". Explicando a ilustração do convite de formatura com o retrato do parto de uma asna, Maria Vitória discorreu sobre o nascimento, "a mudança completa de estado latente, aconchegante, acomodado protegido, para um estado de surpresas, lutas e medos. Não deveria ser um estado de medo se nós tivessemos conseguido captar todas as lições e principalmente tivessemos tido a sorte de encontrar professores iguais, aqueles ressaltados em nosso convite com crase no À. Se todos os nossos professores fossem com "P" maiúsculo, nós teriamos hoje um dia bem mais festivo e nossos medos diminuídos; com eles procuraríamos soluções para as carências que assolam nossa pecuária cujos rebanhos decrescem e como consequencia o mercado de trabalho sofre sérias retrações. Poderiamos ter aprendido que em consequencia da inexistência de uma política agropecuária global, dinâmica, que responda a vocação física e ecológica do País, o divórcio entre a universidade e a realidade permanecerá indefinidamente. De agora em diante iremos lutar com amigos para sobreviver. Até ontem estavamos juntos tentando nos ajudar, suprindo em conjunto as deficiencias do nosso ensino. Agora teremos que nos permitam manter a dignidade da profissão". Questionando numa tradução da inquietação de tantos jovens recém-formados se "era isso que nós queriamos?", "se concluímos o curso ideal?", "estaremos todos conscientes de nossa responsabilidade?", a oradora afirmou que "concluímos que, ser médico-veterinário é tão importante que achamos impossível deixar de entender o gênero humano após anos de convívio, principalmente com os animais. Ao compararmos um animal irracional ao homem, nos quedamos impotentes por não conseguirmos ser animais e assim podemos conviver com eles em igualdade de condições. O animal é tão melhor, o irracional é tão capaz de compreender que ao chegarmos aos canis de nossa escola e encontrando os pobres cães praticamente abandonados na sujeira, frio e chuva por determinação pessoal iniciávamos uma limpeza, o olhar dos bichos era de gratidão, para com aqueles que vinham tirá-los daquela situação miserável e inadequada à sobrevivência de qualquer forma de vida. Serão eles os irracionais? Ou nós que mesmo revoltados com a crueldade e inutilidade de certas experiencias, éramos obrigados a executá-las sob pena de não sermos aprovados? Quando se operava um paciente o seu olhar era um pedido de socorro, era como se nos dissesse: por favor nos trate com dignidade, não nos deixe sentor dor, nos use como cobaias, mas sem massacrar-nos; nós também sentimos amor, damos continuidade a nossa vida, gostamos de viver. O olhar morno e doce do bovino sempre nos comoveu, não podíamos deixar de desejar que fosse esse o olhar de todos os nossos professores, assim, não teríamos ficado aterrorizados com certas disciplinas completamente inúteis, o porque da ciência. Teríamos feito de cada professor um amigo, porque a conquista seria natural. Nós poderíamos amar a todos e de uma forma muito grande, uma vez que só se ama a quem se respeita, se admira e por isso se deseja imitar. Se nós tivessemos todos esses exemplos, a nossa vida universitária teria sido um sucesso; se não barrássemos com tantas portas fechadas e não tivessemos visto um dos melhores hospitais veterinários do País completamente abandonado, enquanto nós implorávamos um lugar para assistirmos a metros de distância, operações em clínicas particulares". O tom crítico do discurso foi que irritou ao reitor em exercicio Alsedo Leprevost: "Ah! professores nossos, que pena termos perdido tanto tempo e não termos trocado a insigurança nossa pela segurança do corpo docente! Desejamos tanto que voces nos quisessem bem e nos ajudassem a chegar às provas sem a preocupação de decorar ciencia, como de a ciencia pudesse ser decorada! Por que tivemos que decorar textos inteiros de livros cujo acesso era simples? Por que não nos ajudaram a compreender a ciencia e a desejar adquirir os livros e deles tirar o mais imporetante para a solução dos problemas afetos a nossa área? Tudo isso deveria ter sido feito com amor, entretanto esse amor não existiu, o que existia e existe, é o interesse individualista de aparecer. O que assistimos na maioria do nosso curso, foi o desamor pela medicina veterinária, o desamor total pelo animal, o desamor pela didática e o desamor indisfarçado pelo aluno. Era aquela obrigação de dar aulas e como resposta nós assistiamos aulas por obrigação. Por isso tudo, consideramos que nossa responsabilidade em relação aos desacertos que iremos cometer, é relativa, a nossa responsabilidade é pelo fato de termos terminado o curso, porque existe consciência". Ao iniciar o discurso-réplica, o reitor em exercício Alsedo Leprevost admitiu ter lido previamente a oração da formanda. E, numa referencia indireta ao fato de Vitória Maria Holzmann, embora curitibana do Juveve, ter feito o primeiro ano de seu curso na Escola Superior de Medicina Veterinaria de Lajes, disse que entendia "o tom insólito do discurso" como "aos choques entre uma alma generosa e as asperezas do mundo que a envolvem(...) descobri nele algo que tenho podido observar em certos acadêmicos: refiro-me à inadaptação dos estudantes que vieram transferidos de outras faculdades. Na verdade, não sei as causas que levam a essa inadaptação(...) A meu ver, quando se muda toda uma circunstância (e nós todos só existimos dentro de uma circunstância), algo se rompe dentro de nós e nem voltamos à circunstância antiga e nem conseguimos nos adaptar à nossa circunstância". Como em seu discurso, ao final, Maria Vitória se referiu ao cinismo - "perdemos nesses 4 anos, aquela sinceridade e em vez de aprendermos a ser bons, aprendemos a ser cinicos" - o discurso do professor Leprevost também se fixou neste item. Em sua oração, disse a formanda referindo-se ao cinismo: "Ele jamais será voltado para vocês e para os animais. Ele jamais será voltado para aqueles que merecem a nossa ajuda, o nosso auxílio. Ele será voltado para uma classe que se extingue, na medida em que os jovens conscientemente reestruturam a sua sociedade e principalmente em que uma consciencia política nos leva a discutir as atitudes que estão sendo tomadas por nós e para conosco. Se isso ocorre, pode ser que daqui a alguns anos, tenhamos turmas menos tristes, menos amargas e principalmente jovens com a ternura dos 18 anos no olhar, e a alegria de estar saindo de uma escola amiga de todos e principalmente sequiosos por imitar exemplos definidos e verdadeiros de homens integrais que deveriam ser todos os nossos professores". Aproveitando o motecinismo, Leprevost contratacou: (...) "Mas isso não significa falta de generosidade, nem mesmo quando lançamos nossa amargura contra os homens em geral e contra os que viveram próximos de nós em particular e nem mesmo quando confessamos o cinismo como norma de vida. A verdade, porém, é que o cinismo fundamenta-se em sua origem numa escola filosófica com o estoicismo e o ceticismo". Lembrando a definição do dicionário de que a escola cínica "se caracteriza principalmente pela oposição radical e ativa aos valores culturais vigentes", o professor Leprevost gastou 21 das 58 linhas de seu discurso para se aprofundar na origem do termo "cínico" ("que vem do cão e o cão está muito próximo de nossa simpatia, convivência etc."), citando Antitenes, Diógenes de Laércio e Aristóteles, procurando assim, fundamentar em referencias a gregos, sua resposta às criticas, genéricas, feitas no discurso de Vitória Maria. Justificando-se, disse o Reitor em Exercício: "Perdoem-se esse comentário. Não queria que ninguém pudesse levar uma visão distorcida de uma fala bastante complexa e contraditória: no fundo, a generosidade; na aparencia, o cinismo, fruto da inadaptação". Xxx Discussões à parte, a solenidade de formatura dos veterinários da UFP teve o mérito de colocar em destaque questões universitárias e importantes. E o diálogo, a troca de idéias e a crítica, são ingredientes básicos de uma democracia. Negar esse direito, sim, é uma posição cínica, em seu sentido radical.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
7
12/08/1980

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