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Key e a cultura popular (I)

Key Imaguire Júnior é uma das pessoas mais fascinantes desta cidade. Arquiteto e professor, especializado inclusive em obras de restauração de antigos edifícios, Key, numa discreção oriental, dedica-se ao estudo dos quadrinhos e cartoons - tema do qual tem a mais completa biblioteca especializada no Paraná (e, creio mesmo, uma das melhores do Brasil). Mas seu interesse não se restringe a arquitetura e aos comics. A exemplo do pernambucano Mário Souto Maior, diretor do Centro de Estudos Folclóricos do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, no Recife (fundado e presidido pelo grande sociólogo Gilberto Freyre), Key Imaguire sempre se voltou ao estudo da cultura popular, os aspectos marginalizados e ignorados mas que refletem hábitos, costumes e mesmo o comportamento do povo. Assim como Souto Maior dedicou importantes livros sobre a presença do diabo na vida do nordestino, rótulos de garrafas de cachaça (temática que, em Curitiba, tem na jornalista Rosirene Gemael, uma dedicada pesquisadora), nomes próprios pouco comuns, sem falar no polêmico "Dicionário do Palavrão" (que permaneceu proibido pela Censura durante anos), Key também decidiu publicar suas pesquisas. O resultado é um dos livros mais interessantes aparecidos nos final do ano passado, edição modesta mas de um incrível bom gosto: na capa e contracapa, em papel craft, a reprodução de labrequim em cor verde (aliás, Key já havia anteriormente publicado um ensaio sobre lambrequins, quando dirigia a Casa Romário Martins). São 60 páginas mimeografadas, na qual após uma introdução ("Turistas, Artesãos & Colecionadores"), seguem-se cinco ensaios, escritos entre fevereiro de 1980 a novembro de 1983: "Panacéia Espiritual em Volantes", "Literatura Monetária", "Pires Pixe Pôxa", "Os Gibis Artesanais Adolescentes" e "Correntes da Sorte". xxx Cada ensaio de Key Imaguire Jr., desenvolvido com base em pesquisas pessoais, revela aspectos curiosos do quotidiano ao qual pouco dão atenção. Assim como até a década de 60, a bibliografia sobre quadrinhosa era mínima (e totalmente em inglês) e a fotonovela, a música rural ou urbana ainda tem pouquíssimos ensaios de profundidade, quem se lembraria de analisar os volantes de sortistas, as frases escritas em papel-moeda, as pixações de muros, etc., de uma visão em que isto representa a cultura popular, em seu sentido antropológico? Este é o grande mérito de Key, que há alguns anos, já havia presenteado 100 privilegiados amigos com um dos mais contundentes livros satíricos à realidade brasileira no período mais duro da repressão - uma coleção de cartuns reunidos num volume apropriadamente intitulado "Apesar de Você", justamente quando a música de Chico Buarque estava mais proibida do que nunca. Aliás, Key é dono de um humor muito especial (e original), o que traduz na dedicatória deste seu "Cinco Ensaios Sobre Cultura Popular": "Dedico este trabalho ao operário egipício que, no momento da função de duas imensas pedras de mais uma "pirâmide do século" - naquele tempo já tinha essas babaquices - escreveu na face cega de uma delas: "O Faraó é um bêbado", dando início, auspiciosamente, à tarde da pixação". xxx O primeiro dos ensaios de Key, desenvolvido há quatro anos passados chama-se "Panacéia Espiritual em Volantes" e reflete uma pesquisa de 10 anos (1970/1980), em que recolheu, pelas ruas de Curitiba, com volantes diferentes, e mais três que chegaram às suas mãos, trazidos por amigos, sendo dois de Santa Catarina e um de Londres. Afora Key Imaguire Jr., a única outra pessoa que conheço e que se deu ao trabalho de, até hoje, de guardar e analisar os volantes das sortistas, distribuídas nas ruas e, especialmente, em filas de ônibus, é Jamil Snege, diretor da Bete Propaganda, escritor e publicitário dos mais premiados. Só que Jamil até hoje não se dispôs a dedicar um estudo a respeito desta curiosa forma de comunicação, enquanto que Key, arguro e observador, não só colecionou os volantes, como os estudou criteriosamente, resultando um ensaio de oito páginas. Analisa os formatos dos mesmos, sua composição tipográfica, a homogeneidade de quase todos. A ilustração é muito pouco empregada, embora em alguns casos haja curiosidades. Por xemplo, uma certa professora Martha emprega, no alto do impresso, uma faixa em que estão desenhadas uma mão estendida, uma aliança, uma estrela, uma lua e as palavras "casamento - astrologia - mudança", em filactérios. Todos os volantes reunidos por Key anunciam o serviço de mulheres. "Um único impresso, vindo de Blumenau, traz os nomes dos Professores Roberto e Iara - cumplicidade que, de resto, não existe em nenhum dos outros" diz Key, que observa que o volante inevitavelmente se compõem de 3 partes: a inicial, que funciona como chamada, a intermediária (com o texto principal) e a final contendo observações diversas e tudo redigido sem muita cerimônia em relação ás regras gramaticais vigentes. As habilidades mais freqüentes anunciadas são a Grafologia e a Astrologia, citadas em quase todos os volantes, acrescidas de mais algumas (bola de cristal, cartas adivinhatórias, vidência etc.). Quanto às curas, o elenco é o mesmo dos psiquiatras e analistas, com a diferença dos preços insignificates. Praticamente toda a gama de aflições do ser humano normal está relacionada na parte maior dos textos desses volantes. Os preços variam, obviamente, mas há preocupação especial com os horários de atendimento e detalhamento dos endereços, geralmente em bairros. Analisando um tema que, saldo engano, até hoje não teve nenhum nsaio, Key conclui seu ensaio, lembrando que as "madames", "professoras", "mães", "tias" etc., que anunciam seus trabalhos milagrosos, representam, para as camadas mais simples da população e analistas para as classes mais consumidoras: a esperança de chegar a possuir uma esperança entre os computadores, automóveis e televisores dos tempos mais neuróticos e desumanos da História da Humanidade.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
05/01/1984

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