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Aramis

A lambada na tela para o subdesenvolvido consumir

É lamentável que J. Ramos Tinhorão, o mais contundente dos sociólogos-críticos-pesquisadores de nossa cultura (dita) popular, não esteja com sua metralhadora giratória na imprensa nacional. Afinal, Tinhorão (José Ramos), 62 anos, a partir de 1951 na imprensa, sempre se caracterizou pela defesa intransigente do que entende por valores brasileiros - é um crítico feroz de modismos, marketings e jogadas internacionais disfarçadas como cultura. Nem a Bossa Nova escapou de seu olhar crítico, pois a partir de "O Samba Agora Vai... a farsa da música popular no Exterior" (1969), Tinhorão esbravejou tanto em favor de valores de raízes de nossa música que acabou marginalizado e até boicotado pela imprensa nacional - quando, independente de seus radicalismos, sua cultura, informação e sentido dialético de entender a dificílima questão popular deveriam lhe dar o direito de continuar externando seus pontos de vista - que, amado ou odiado, o fizeram o nome mais popular do jornalismo musical brasileiro (prova disto é que há 10 anos sem escrever em veículos nacionais, continua a ser convidado para palestras, cursos etc., e num trabalho solitário, trabalhando em seus livros). Tinhorão, por certo, analisaria com uma grande profundidade o fenômeno de lambada - a mais rápida e recente jogada de marketing musical internacional que, com suas raízes na Amazônia (em especial Belém do Pará), fez o caminho inverso: foi industrializada na França, tornou-se um modismo musical do último verão e, agora, simultaneamente ao que acontece nos Estados Unidos, é explorado em filmes classe B, produzidos a toque-de-caixa, justamente para aproveitar todo um potencial de consumo descartável. Estreado há apenas duas semanas em dezenas de cinemas nos Estados Unidos, dois filmes que aproveitam a lambada como marketing terão lançamento nacional no Brasil na próxima semana - "Botando Fogo na Noite - Lambada - o original" de Joel Silbert (cine São João, a partir do dia 29) e "Lambda! A Dança Proibida" de Greyson Clark (cine Plaza, também no dia 29). Independente de qualquer apreciação estética que estas duas produções possam merecer (tanto os realizadores, como os intérpretes são totalmente desconhecidos no Brasil) o que impressiona é o senso de oportunidade que os americanos sempre tiveram para modismos. Em 1955, quando Rock Around the Clock de Bill Haley (1925-1980), que Charles Wolcott havia utilizado na trilha sonora de "Sementes da Violência" (The Black-board Jungle, de Richard Brooks) projetava o novo ritmo (na verdade, a música havia sido composta dois anos antes), antes mesmo daquele filme (estrelado por Glenn Ford e Sidney Poitier, em início de carreira) chegar ao Brasil, outras produções explorando o novo ritmo - como "Ao Balanço das Horas" como o próprio Bill Haley and his Comets - eram lançados nacionalmente, impulsionando o novo modismo. Exemplos anteriores - da era do charleston, do swing etc - a posteriores - como o da discotheque (a partir de "Os Embalos de Sábado à Noite/Saturday Night Fever", 73, de John Badham), para não citar exemplos mais recentes (reggae, break etc) mostram que a indústria do entretenimento americano nada perde, tudo aproveita - não importa de que forma. Enquanto a própria indústria fonográfica brasileira foi pega de calças curtas no marketing da lambada - só no segundo semestre começaram a sair discos aproveitando o modismo, embora artistas do Pará e adjacências (Pinduca, Beto Barbosa etc) há anos já viessem gravando o ritmo - também em termos de cinema, apenas um realizador se preocupou, seriamente, em focar suas câmeras ao novo fenômeno. Guido Araújo, 56 anos, professor e cineasta diretor por 17 anos da Jornada de Cinema da Bahia (que foi obrigado a interromper no ano passado por falta de apoio), iniciou em novembro as filmagens de um média-metragem mostrando que a lambada tem suas raízes a partir de Porto Seguro, na Bahia. Com um sentido antropológico, documentarista na melhor linha de Joris Ivens (1898-1989), Araújo deve realizar um filme honesto e profundo sobre uma temática rica para apreciações do ponto de vista musical antropológico-sociológico. Evidentemente, bem diferente das duas produções comerciais que chegando na próxima semana no circuitão nacional oferecerão uma visão distorcida da lambada - misturada em histórias de jovens, lambaderias em "Set The Night of Fire - Lambada" ("Botando Fogo na Noite - Lambada") ou explorando, ridiculamente, o lado místico, de origens amazônicas, com misturas de feitiçarias e magias, em "Lambada! The Forbiden Dance" ("Lambada, a Dança Proibida"). "Lambada! A Dança Proibida", produção de Richard L. Albert, traz na cabeça do elenco uma Miss América-1985, Laura Herring, que anteriormente havia aparecido numa ponta em "Álamo: 13 dias para a glória" ("The Alamo: thriteen days to glory", 1987, de Burt Kennedy, inédito nos cinemas mas lançado pela VIC-Vídeo). Ao seu lado, estreando no cinema, Jeff James, que trocou uma carreira na informática pelo cinema (?) como diz o release desta produção - repleto de informações absurdas em torno das origens da lambada - e procurando destacar o sentido erótico desta música-dança. Já "Botando Fogo na Noite - Lambada", inteiramente filmado em Los Angeles, tem sua ação totalmente urbana, em torno dos conflitos de um grupo de apaixonados pela nova dança que freqüentam o night club Terra de Ninguém. Nisto, ao menos há coerência: na terra de ninguém de tudo que possa justificar exploração & dólares, os americanos, organizadamente e poderosos, conseguem aprontar em menos de 90 dias filmes que, com toda certeza, terão um imenso esquema promocional no Brasil - partindo justamente de um gênero musical que, por anos, ficou esquecido e restrito aos limites de Belém do Pará - com figuras solitárias como o Pinduca. LEGENDA FOTO 1 - Beto e Perna: ensinando lambada para os curitibanos. LEGENDA FOTO 2 - Laura Herring (Miss America-85) e Jeff James em "Lambada: A Dança Proibida" - que simultaneamente a "Botando Fogo na Noite - Lambada" estréiam no dia 29 nacionalmente. É o cinema explorando o modismo da dança brasileira que foi "descoberta" pelos francesas no ano passado.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
23/03/1990

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