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Aramis

Lee faz o filme certo para discutir racismo

"Algumas pessoas se viciam nas coisas mais estranhas Que nada tem a ver com a vida Deus nos deu vida e o que damos a Ele? Se não é nosso amor, o que será" ("Amor Químico", música-tema de Stewie Wonder / Stephanie Andrews, em "Febre na Selva"). A seqüência de abertura de "Febre na Selva" (Cine Condor) lembra o início de "Faça a Coisa Certa": num bairro negro (Harlem), começa uma nova manhã, marcada pelo jornaleiro atirando um exemplar do "The New York Times". Em seu apartamento, um casal faz amor tão apaixonado que acorda a filha. A partir deste corte no cotidiano, Spike Lee situa suas personagens dentro de uma definida categoria sócio-racial sobre o qual explodirão os reflexos do racismo e intolerância. Se "Do the Right Thing" - que em 1989 por pouco não saiu de Cannes com a Palma de Ouro (dada a "Sexo, Mentiras e Videoteipe") - a ação se passava num dia quente de verão, ao longo de apenas 48 horas, neste "Jungle Fever", há uma ampliação do tempo. Uma história que Spike procura contar de forma detalhada, quase discursiva, sem o ritmo rap de "Faça a Coisa Certa", embora obtendo uma integração perfeita na imagem-música, ele que é filho de um jazzista e em três outros filmes ("She's Gonna Have It", "School Daze" e "Mais e Melhores Blues") já havia mostrado esta interação de conflitos raciais com um ritmo extremamente musical. A relação que um arquiteto negro, Flipper Purify (Wesley Snipes), talentoso e trabalhador - mas não reconhecido por seus patrões brancos que lhe negam uma justa sociedade no escritório - estabelece com Angie Tucci (Annabela Sciorra), filha de italianos, provoca conflitos familiares - tanto da família da moça como do fanático pai de Flipper, o pastor Purify (Ossie Davis), tão preconceituoso quanto os brancos. Somam-se problemas com o seu viciado irmão Gator (Samuel L. Jackson), a cuja procura desce literalmente ao inferno do "Taj Mahal" dos drogados - um depósito abandonado no qual centenas de "junkiers" fazem suas últimas viagens com drogas pesadíssimas. Só esta seqüência, fotografada com terrível realismo em imagens fantásticas de Ernest Dickerson - já faria de "Jungle Fever" um filme definitivo e corajoso na denúncia das drogas - preocupação também do cineasta-ator Mário van Peebles em "New Jack City - A Gang Brutal" (São João), com o mesmo ator, Wesley Snipes - mas ali como o cruel Nino Brown, líder da "Cash Money Brothers", que domina o mercado do "crack" nova-iorquino - em guerra com a Máfia. Valorizando os pretos mas fugindo ao maniqueísmo, Spike Lee também repudia o gandheismo de Martin Luther King (1929-1968), pois sua visão política é muito mais próxima do "Black Power" dos anos 60 como Malcolm X (*) e outros líderes radicais. Lee, entretanto, não é um xiita e oferece nos diálogos momentos de reflexões, questionando posições tanto de brancos como de negros. Por exemplo, quando o namorado desprezado por Angie, o jovem Paulie Carbonne (John Turturro) discute com amigos sobre a escalada dos negros americanos, focando a eleição do advogado negro David Dinkins à prefeitura de Nova Iorque ou a prisão do também prefeito de Washington, Marion Barry Jr., pelo consumo de "crack", não há uma separação rígida entre bons e maus, negros e brancos. Também as relações sexuais inter-raciais - friamente analisadas por um grupo de amigas de Drew (Lonette McKeen), a esposa mulata (embranquecida) de Flipper, ao lhe darem solidariedade pela traição do marido ao se envolver com um branca, ganha análise profunda, ficando o espectador como uma espécie de complacente "voyer" num debate sobre a diferença dos prazeres do sexo com brancos ou negros. A italiana Angie também é questionável em sua opção por uma "experiência" sexual com um negro - e a sua volta ao lar, apesar da dominação machista, do pai e irmãos, não deixa de ser uma concessão. A dominação paternal ainda reflete-se nas relações do viúvo Lou Carbone (Anthonny Quinn, excelente) tiranizando o filho Lou - acossado pela dor-de-cotovelo por ter a mulher que ama preferido um negro. Sem chegar a um "happy end", "Jungle Fever" não deixa de ser a vida como ela é: o tempo ajusta as paixões mas o grito lancinante de Flipper ao final, é um sinal de desespero. Nervoso, denso, extremamente bem narrado e com excelentes interpretações, "Febre na Selva" é ótimo em sua trilha sonora. Terence Blanchard "costurou" sonoramente os temas originais e a música incidental - standards com Frank Sinatra e "gospels" com Mahalia Jackson (1911-1972) - as canções de Stewie Wonder. Uma delas, "Chemical Love", um pesado libelo contra as drogas, já está entre as canções do ano - assim como o álbum (edição no Brasil da BMG/Ariola) fica entre os poucos lançamentos classe A do ano. Filme para ser visto (e revisto), "Jungle Fever" oferece campo para muitas discussões e, por sua atualidade - mostrando que na Nova Iorque deste final de década há ainda um racismo tão violento quanto o do Sul dos Estados Unidos e a audácia de um negro e uma branca transarem pode terminar em morte. Aliás, no primeiro fotograma do filme, Spike dedica-o a um adolescente que no ano passado foi assassinado por brancos no bairro predominantemente italiano de Benson Hurst pelo "crime" de estar saindo com uma moça branca. Nota (*) Há dois anos que Spike Lee trabalha no roteiro sobre uma cinebiografia de Malcolm X (Malcolm M. Gravey, Omaha, Nebraska, 19/05/1925 - Harlen, NY, 21/02/1985), líder do "Black Power" que morreu assassinado.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
05/11/1991

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