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Aramis

Melhores blues sem as lágrimas

Quem conhece Saul (Silva Bueno), 45, o mais jazzístico pistão da noite curitibana e que há cinco anos faz de seu Trumpet's (Rua Cruz Machado) o único endereço em que se pode escutar a qualquer hora da madrugada, improvisações com instrumentistas que amam o jazz (seja os de casa, ou profissionais e amadores que ali gostam de dar canja) não deixará de estabelecer algumas ligações ao assistir "Mais e Melhores Blues" (Lido II, até quinta-feira). Até fisicamente, o bom Saul lembra um pouco a Denze Washington, 35 anos, que no filme de Spike Lee interpreta o talentoso pistonista Bleek Gilliam. Como Bleek, o nosso Saul é um pistonista sensível, de boas idéias e que, também como o personagem, tem sua intensa vida amorosa - nos últimos meses mais disciplinada, desde que encontrou na afinada cantora Gisela, sua atual musa - que lhe dará um filho nas próximas semanas. Claro que as comparações entre o paranaense (de Bandeirantes, com quilometragem carioca) Saul e o ficcional Bleek Gilliam, do mundo musical nova-iorquino, acabam por aí, mas não deixa de ser uma maneira de se ver melhor a extrema universalidade que Spike Lee conseguiu dar aos personagens deste seu quinto longa-metragem. "Mais e Melhores Blues", ao contrário da maioria dos filmes sobre personagens de jazz rodados até hoje, não tem pretensões biográficas. Mesmo que na construção do pistonista Bleek possa ter refletidas informações fragmentárias da vida pessoal e profissional dos muitos músicos de jazz com quem convive (inclusive seu pai, Bill, que assina a trilha sonora, é músico), o roteiro de Lee é ficcional. Também ao contrário da tônica que tem marcado mesmo os melhores jazz movies - o universo das drogas, culpa & remorsos - foi excluído por Lee, que preferiu colocar o lado da violência na presença de um grupo de apostadores, liderados pelo latino Petey (Ruben Blades). Bleek Gilliam é um pistonista de jazz, egoísta em termos de sua carreira, dividido entre duas mulheres - a suave professora Indigo Dowes (Joie Lee, irmã de Spike) e a ambiciosa candidata a cantora Clark Betancourt (Cynda Williams, uma revelação). Dividido também entre a lealdade ao seu amigo de infância, o incompetente empresário Giant (Spike Lee) - mais preocupado com suas dívidas de jogo do que com o trabalho - e as reclamações do ambicioso saxofonista Shadow Henderon (Wesley Snipes), Bleek pensa, entretanto, antes de tudo em sua carreira. O contrato leonino com os irmãos judeus Moe e Josh Flarbush (John e Nick Turruro), donos do clube de jazz Beneth The Underdog (o título é uma referência a autobiografia do baixista Charlie Mingus) acaba sendo rompido, no final, de uma forma dramática - com Shadow partindo para sua própria banda e Bleek afastando-se da música. Spike Lee foi cuidadoso ao desenvolver a idéia de "Mais e Melhores Blues", pois tentou fazer uma espécie de "resposta" a filmes recentes sobre jazz realizados por cineastas brancos como "Ao Redor da Meia-Noite" (Bertrand Tavernier), "Bird" (Clint Eastwood) e "Let's Get Lost" (de Bruce Weber, documentário sobre Chet Baker, inédito no Brasil). Disse Lee: "Falta uma coisa muito importante a todos esses filmes: a textura humana do músico do jazz e do próprio jazz". Se Lee conseguiu ou não esta "textura humana" cabe ao cinéfilo / jazzófilo julgar... Em comparação aos infernos que vivem os personagens dos outros filmes citados, vítimas das drogas, Bleek é um vitorioso: jovem, bonito, bem amado, elegantíssimo e organizado em seus horários, mora num apartamento que mais parece de yuppie americano do que de um músico de jazz, com uma belíssima visão de Manhattan. Solidário ao atrapalhado amigo Gigante, mas insensível a reclamações de suas mulheres e seus músicos, acaba sofrendo uma espécie de punição - quando gangsters agridem Gigante, e lhe sobram porradas que destroem a chance de continuar a soprar seu instrumento. Quando tudo parece caminhar para um final de tragédia, há um belo posfácio com a redenção pelo amor, o casamento, e, fechando-se o ciclo, o pai vendo o filho tocar jazz - tal como no início. Caprichado ao extremo - a partir da cenografia e desenhos de arte (Ruth Carter e Wynn Thomas), como designer de créditos de John Calhoun que remetem a escola de Saul Bass, "My Better Blues", tem uma fotografia suave de Ernest Dickerson. Mas é na trilha sonora, naturalmente, que repousa o grande embalo: aos três temas compostos por Bill Lee (inclusive uma "sinfônica" abertura com cordas), soma-se o talento de Bradford Marsalis e seu quarteto - (mais o pistonista Terence Blanchard), recriando clássicos como "Pork Pie Hat" (Charlie Mingus) e "A Love Supreme" (John Coltrane), dois entre muitos (Ellington Gillespie, etc.) homenageados com várias citações por Lee, que ao final, inclusive, usa uma epígrafe retirada de uma entrevista de John Coltrane (1926-1967). Com ótimo astral, suave e delicioso, "Mais e Melhores Blues" é o inverso da tristeza que tradicionalmente se atribui a palavra blues. Afinal, nem todo músico de jazz, para fazer bela música, precisa ser drogado e morrer na miséria. Dizzy Gillespie, Ellington, Satchmo, Basie e outros, são prova disto.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
06/02/1991

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