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Aramis

Não chores mais. Argentina!

As comparações são inevitáveis. Asssumidamente, o próprio Hugo Mengarelli admite: - Admirações e influências, quem não as tem? Assim, a lembrança de "Rasga Coração!", a peça-testamento que Oduvaldo Viana Filho (1936-1974) deixou nas mãos de seu amigo José Renato (e que teria sua estréia nacional em Curitiba, cinco anos depois), é clara. Mas há também referencial de Fellini, Buñuel "e tantos outros que sempre admirei e admiro" diz Mengarelli, em sua linguagem explosiva, num portunhol que dez anos de Brasil não eliminaram. Um fato é certo: "O Eucalipto e os Porcos" (auditório Salvador de Ferrante, até o dia 28, 21 horas) é um texto vigoroso, consciente e elaborado por um dramaturgo em crescimento. Dificuldades (muitas) existiram: a impossibilidade de contar com um elenco mais experiente, limitações de produção as amplas propostas da peça - um político e panorâmico painel da Argentina ao longo de mais de 30 anos de atribulada vida política - e seus reflexos sobre uma família. Apesar desta ser a sua terceira peça, Hugo Mengarelli, argentino de rosário, 40 anos, não deixa de buscar aquilo que caracteriza o dramaturgo (ou cineasta) em início de carreira: exorcizar fantasmas do passado e prestar homenagens. Mengarelli, intelectual consciente da política do Cone Sul, não quis fazer uma peça alienada, distante. Desejou tocar o dedo na ferida, provocar discussões e debates - e mergulhou, nestes últimos quatro anos, de corpo e alma, numa grande revisão dos conflitos da Argentina, para sintetizá-los numa peça em dois atos, demoradamente extensa e confusa na primeira parte - mas que cresce e amadurece ao final. Elétrico e dinâmico, Mengarelli em dez anos de vivência curitibana, aqui casou e descasou, teve dois filhos - o mais velho, Luciano, 11 anos, comportado ator nesta peça, foi professor no CETEF (onde realizou vários filmes didáticos, fez curtas e médias interessantes - de ficção - "O Mágico" -com o falecido Antônio Carlos Kraide numa de suas melhores atuações e ótimas locações em Morretes), documentário "A Roça", infelizmente pouco vistos. Dramaturgicamente, Mengarelli transformou um texto ingênuo da bonita Isabela Zanchi (ex-atriz, hoje artista plástica) numa peça de boas idéias: "Sopre as velas para que a chama não se apague". Preocupado em fazer um teatro para adolescentes, capaz de despertar as talking heads de uma nova geração inquieta, escreveu e dirigiu "Vou Te Contar Como é Lá em Casa". Professor de cinema no curso de comunicação da Universidade Federal, passou os últimos dois anos na ponte rodoviária Curitiba-São Paulo para fazer mestrado e desenvolver uma dissertação sobre "cinema: ideologia inconsciente", com orientação de Ismael Xavier. Agora, professor também do Curso de Artes Cênicas da UCP/FTG e voltando a lecionar técnica de estruturação da imagem sequenciada na UFP, Mengarelli mergulha no teatro, com vigor, entusiasmo e emoção. Estreada em novembro do ano passado, "O Eucalipto e os Porcos" ganhou seis indicações ao troféu Gralha Azul e, merecidamente, levou três premiações: melhor texto, ator revelação - Tupaceretan Matheus e atriz revelação - Marisa Bruning. xxx Realmente, se no elenco de apoio falta, em muitos casos, gente mais experiente - afinal, excetuando-se Maria Cecília Monteiro ("Tia Margarida") e Sansores França ("Nomo Moretti"), em participações especiais, todos são jovens em início de carreira - esta peça vale pelas revelações de Tupaceretan e Marísia. O primeiro, como Rafael Moretti - condutor da história em seus vários planos, arca com um papel dificílimo, que exige um timing exato. Marísia Bruning, em três personagens fortes - Maria Moretti, Mirta Truffaut e Marcia Menendez (além da "Morte", no 2º ato) é, sem favor a grande figura em cena. Consegue criar personagens diametralmente opostos, dialogando entre a personagem madura e a jovem guerrilheira - uma das seqüências mais dinâmicas da peça. É de se imaginar que se todo o elenco de apoio tivesse a força, garra e vigor de Marísia, como este espetáculo ganharia - mas apesar disto, corajosamente, Mengarelli levará a montagem ao Teatro Glauce Rocha (Rio de Janeiro, junho próximo), encarando assim, profissionalmente, uma montagem que nasceu amadoristicamente mas que cresce aos poucos. xxx A formação de cineasta (com mais de 20 filmes realizados, entre curtas, publicitários e didáticos) e crítico de cinema (que falta faz os seus textos inteligentes, que a "Gazeta do Povo" publicou durante alguns anos?). Reflete-se na carpintaria da peça. Mengarelli armou a história em diferentes planos - passado, presente e mesmo no imaginário simbólico - fazendo, com isto, o espetáculo adquirir um ritmo de montagem vibrante. Aliás, se não fosse esta estrutura, a monotonia tomaria conta do espectador após os primeiros 20 minutos, pois apesar da revista-programa trazer algumas informações sobre personagens, fatos e datas citadas pelos personagens, é difícil a quem não conheça em profundidade a política argentina (e quantos a conhecem?) entender os vaivéns de Rafael Moretti, a guerrilha urbana, a presença dos peronistas, montoneros, gorilas, golpistas e outras figuras que, na Argentina - como no Brasil - provocaram anos de tortura, medo, violência e repressão. Dividida em duas partes "Viva Peron, Carajo!" e "La Cumparsita" - Mengarelli propõe a mistura de realidade e sonho e, ao som de uma trilha sonora em que Piazolla abraça Gardel, compõe um universo no qual o realismo e a brutalidade não eliminam a esperança e o otimismo, colocada essencialmente no epílogo (ou prólogo, indaga?) emocionante. Lembrando Balzac, que disse que "eu não escrevo, quem escreve é a história, eu sou simplesmente seu secretário", Mengarelli não se propôs a verdades definitivas - apenas de levantar idéias e situações, num texto que se destaca em nossos palcos por trazer vigor que tanto falta ao bom teatro. Mengarelli optou pela direção, pela impossibilidade prática de encontrar alguém que pudesse traduzir, com tanta vivência, uma realidade recente, amarga e que só um argentino inquieto e sensível poderia sentir. Por isto, honestamente, Hugo diz: - "Dirigir é tratar de interpretar, analisar, junto aos atores, um texto literário que deve ser dramatizado". "O Eucalipto e os Porcos" é um espetáculo com fragilidades técnicas, lento em certos momentos, confuso até para quem não se atenha mais profundamente a realidade recente. Argentina - agora, mais uma vez, em dias de fogos & crises. Mas é um texto honesto num espetáculo montado e que traz material para debates e análises, como, democraticamente, o próprio autor-diretor deseja - inclusive fazendo uma clara reflexão: - "Terrível é comprovar que os limites do sonho e da realidade estão permeabilizados por uma camada tão frágil de palavras, que o impetuoso desejo tão facilmente pode quebrar. Será que os porcos podem chegar à copa do eucalipto? E, por acaso, a "democracia" pode ser atingida?". LEGENDA FOTO - A família Moretti: 4 décadas de Argentina.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
17
22/04/1987

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