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Aramis

Nasce um cineasta com a poesia de Manoel Barros

A expectativa era de que "Caramujo-Flor" fosse apenas um filme para revelar a obra de um dos maiores poetas vivos do Brasil, mas ainda ignorado da maioria do público - o matogrossense Manoel de Barros (Cuiabá, 16/11/1916), enaltecido por intelectuais que vão de Millor Fernandes e Antonio Houaiss (que aparece na primeira seqüência), mas com sua (pequena) obra praticamente inédita fora de um fraternal círculo de iniciados. A surpresa foi ainda maior: "O Inviável Anonimato do Caramujo-Flor, ou / AC de Manoel de Barros" revela um cineasta da maior voltagem criativa, com muita beleza plástica e que com um matogrossense elenco all star (o cantor Ney Matogrosso; compositor e violeiro Almir Satter; atriz Aracy Balabanian; ator Rubens Corrêa; a cantora Tetê Espíndola) foi um dos pontos mais interessantes da 21ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Joel Pizzini Filho (Dourados, 13/12/1960), era desde o início do Festival, a pessoa mais feliz: independente dos resultados, só o fato deste seu primeiro filme chegar ao evento competitivo o deixou extasiado. Após a premiação, na noite de terça-feira, 1º, Joel foi o que mais comemorou os prêmios de melhor direção na categoria de curta, 35mm (dividido com o carioca Ricardo Bravo, por "Referência"), fotografia (Pedro Farkas) e o "Bola de Cristal" - premiação especial do Centro de Produção Cultural Educativa da Universidade de Brasília, que corresponde ao financiamento de um vídeo sobre tema do Centro-Oeste. Para muitos, "Caramujo-Flor" mereceria ainda outros prêmios: o de fotografia - belíssima - foi dividido com Walter Carvalho, por "O Inspetor", de Arthur Omar - mas o importante foi a revelação de Joel como cineasta. Humilde, tímido no início, Joel insistia em falar de suas ligações curitibanas: aqui residiu entre 1979 a junho de 1982, formando-se em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná e trabalhando no O Estado do Paraná, além de colaborar com "Anexo", no período em que Reynaldo Jardim editava aquele suplemento do extinto Diário do Paraná. Rato da Cinemateca Guido Viaro, considera que ali teve sua formação cinematográfica - "via todas as programações e sempre que aparecia algum cineasta na cidade eu o levava ao Diretório Acadêmico, para dialogar com os estudantes interessados em cinema" lembra. Voltando para Campo Grande, trabalhou com José Octávio Guizzo (advogado da turma de 1963 da Universidade Federal do Paraná; primeiro diretor da Fundação Cultural de Mato Grosso do Sul), também um cinéfilo apaixonado, amigo pessoal de Manoel de Barros - que o auxiliou na aproximação com o poeta. Tímido, de raros amigos, manoel concordou que fosse feito um filme em torno de sua obra - mas sem que ele aparecesse. Joel idealizou então uma leitura cinematográfica da obra de Barros, "que ao completar no anonimato meio século de criação literária, é reconhecido agora como um dos maiores poetas em atividade no Brasil". Em Curitiba, durante um show de Ney MatoGrosso, Joel lhe passou o roteiro do filme que dava sua visão de Barros. Sensível, apaixonado por cinema (tinha acabado de rodar "Sonho de Valsa", de Ana Carolina - ainda inédito em Curitiba), Ney não só aceitou fazer o filme - recebendo um salário simbólico (praticamente 10% do que ganha num show), como trocou uma extensão da temporada de "Pescador de Pérolas" a Europa para, enfrentando o calor e falta de conforto, filmar no Pantanal, em Corumbá, Gruta do Bonito e também no Rio e São Paulo - "no itinerário criativo de Manoel de Barros via colagem de textos e imagens suscitadas por sua "Estética do Ordinário", explica Joel, que, para incorporar os fragmentos do universo estético e temático do autor de "Arte de Infantilizar Formigas", sensibilizou também outros "intérpretes da alma sul-matogrossense". Assim, nas belíssimas imagens de "Caramujo-Flor" (será difícil fazer os cortes para ficar com 15 minutos e poder cumprir a exigência que possibilite sua exibição no cricuito comercial", lamenta Joel), Ney Matogrosso é "Cabeludinho" - a vertente lúdica, uma espécie de "corpo poético"; Rubens Corrêa, outro matogrossense que deu certo, é "Andarilho", a encarnação do sábio demiurgo. Já Tetê Espíndola é a alma feminina, a dimensão sonora dessa poesia - "uma musa mítica e fértil". Uma equipe técnica de alto nível também ajudou Joel a fazer deste seu filme de estréia uma jóia de qualidade: Pedro Farkas renunciou ao contrato oferecido por Lui Faria para "Lili Carabina" (que representará o Brasil no V FestRio, 17 a 26 de novembro), para fazer a fotografia. Geraldo Ribeiro e João Godoy cuidaram da qualidade sonora, Idê Lacreta fez a montagem e Clovis Bueno a direção de arte. Entretanto, se não fosse a colaboração do Bamerindus, o filme não se viabilizaria. Eliane Bandeira, produtora executiva lembra que "graças a sensibilidade de Sergio Reis, com quem mantive várias reuniões, vieram os recursos que, acrescidos aos que obtivemos junto ao governo do Mato Grosso, possibilitaram a produção". O Bamerindus não poderia ter feito melhor aplicação: "Caramujo-Flor" é um filme íntimo, belo - que fugindo da biografia tradicional (aliás, as citações informativas sobre Manoel de Barros são poucas - e exigirão, inclusive, a colocação de um adendo informativo ao final) tem uma modernidade de narrativa, sensibilidade de emoções - e amplo espaço para as mais diferentes interpretações - que justificarão que se faça longas análises. Sua primeira exibição aconteceu em Brasília e só na próxima semana é que Joel estará mostrando o filme em Campo Grande ("talvez Manoel, tímido como é, nem apareça..."). Ney Matogrosso gostou tanto do trabalho que foi a Brasília e ficou por quatro dias, pouco saindo do Hotel St. Paul. Foi uma das poucas estrelas presentes ao Festival. Com uma bonita teorização sobre o filme, Pizzini lembra que buscou situar o anonimato do criador, mas experimentando em imagens a sua poesia, que é auto-definida como "armação de objetos lúdicos com emprego de palavras, cores, imagens e sons" - o que coincide com o próprio sentido de montagem cinematográfica. Sem pretensão, mas com sinceridade, diz: - Um poema sob cinema... LEGENDA FOTO - Filmagens de "Caramujo-Flor", numa seqüência do Metrô, em São Paulo: o fotógrafo Pedro Farkas, assistente Kátia Coelho e o diretor Joel Pizzini, atrás da câmera - que focaliza Ney Matogrosso.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
06/11/1988

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