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Aramis

A noite em que João Gilberto cantou em Curitiba

Foi num domingo. E lá se vão 28 anos, mas parece que foi ontem. A Bossa Nova ainda era vista com restrições. Mesmo pessoas que gostavam da música brasileira como João Féder, então secretário de redação da vibrante "Tribuna do Paraná", ex-discotecário da Rádio Guairacá e hoje conselheiro do Tribunal de Contas, não entendia bem o canto aparentemente desafinado do nome maior da Bossa Nova - o baiano João Gilberto. Nara Leão, então, nem pensar. Inúmeras vezes, em sua sala de chefe da redação da "Tribuna", na antiga sede da Editora "O Estado do Paraná" - Rua Barão do Rio Branco, 560 - Féder ironizava como cantora Narinha Leão, que, até então, praticamente era mais falada como a musa da Bossa Nova do que ouvida, pois só tinha gravado uma faixa, "Maria do Maranhão", no terceiro elepê de Carlos Lyra na Philips ("Depois do Carnaval", 1962). Ronaldo Osti Pereira, que quando estudante de medicina (curso que nunca chegou a completar) foi presidente da União Paranaense dos Estudantes, carnavalesco histórico na melhor fase do Não Agita, fazia restrições à Bossa Nova mas admitia que o novo estilo havia tornado menos agressiva a percussão do samba tradicional. Mauri Furtado (1938-1968), cantor em seus tempos de criança, quando imitava Vicente Celestino (1894-1968) nos programas "Clube Mirim M-5", apresentado aos domingos pela manhã por Aluízio Finzeto (1917-1979), na Rádio Guairacá, também demorou para aceitar a Bossa Nova. Inteligente, atualizadíssimo em literatura, dono de um texto magnífico (quando seus poemas e crônicas, que deixou ao morrer, afogado na praia de Pontal do Sul, em 8 de dezembro de 1964, serão reunidos em livro?) no início fazia parte do coro dos descontentes com a música que a partir de 1960 começava a conquistar o Brasil. Fã de Elizeth Cardoso e Vinícius de Moraes - foi um dos primeiros a me falar do histórico elepê "Canção do Amor Demais" (Festa, 1958), Mauri, lembro-me bem, numa madrugada de poesia & vinho, poucas semanas antes de sua morte, quando juntos caminhávamos pela Rua Desembargador Westphalen, disse: - "Sabe, cheguei a uma conclusão: a Bossa Nova é importante mesmo". Criado ainda nos anos 40, quando o hoje sexagenário Abílio Ribeiro era o garboso diretor social do Diretório Acadêmico de Engenharia do Paraná, o Chá Dançante dominical nos salões da antiga Sociedade de Educação Física Duque de Caxias, na esquina das ruas Dr. Murici e José Loureiro - onde hoje existe o prédio das Lojas Murici - era o mais movimentado programa social de Curitiba daqueles anos dourados. O nome do baterista Genésio Ramalho, com seu jeito de Duke Ellington a frente de uma big band que tinha o melhor repertório de standards americanos, permanecerá eternamente associado às domingueiras dançantes que, de chá tinha pouco, mas tinha comportados enlevos românticos - com futuros engenheiros e castas donzelas da nossa melhor sociedade - ponto zero de muitas dezenas de casamentos felizes, alguns nem tanto. Dependendo da cabeça do diretor social do DAEP, a programação artística do Chá Dançante variava: a atração podia ser até um nome tradicionalíssimo como de um cantor inovador. Talvez isto foi o que levou o Diretório de Engenharia a associar-se ao radialista Paulo César, que apresentava um programa de auditório na Guairacá, "A Voz Nativa da Terra dos Pinheirais", a contratar uma apresentação de João Gilberto. O cantor havia gravado o seu primeiro elepê, tinha se casado recentemente com Astrud Winert, que nem sonhava que seria um dia a cantora internacional de "The Girl from Ipanema" e, como conta Ruy Castro em "Chega de Saudade", vivia talvez sua única fase de artista disciplinado, preocupado com os compromissos domésticos e um filho, João Marcelo, a caminho. Talvez por isto que tenha vindo a Curitiba no dia marcado, se apresentando perante um público que, em absoluto, não estava entendendo nada do que acontecia de transformação na música brasileira - mas que aos domingos lotava o auditório da Guairacá, na Rua Barão do Rio Branco e, às 23h, foi até a Duque de Caxias, onde fez um show que teve aplausos e até pedidos de bis - mas nada de entusiástico. Tudo isto sem reclamar do som que, convenhamos, era pré-diluviano. Eu sei disto, porque fui o único repórter que o procurou na Rádio Guairacá e, depois, em companhia dos jovens diretores do Diretório de Engenharia (quem seriam? O tempo levou seus nomes e inclusive detalhes mais precisos) assisti seu show no clube, esticado com um papo pela madrugada que revelou João uma pessoa extremamente cativante. Aliás, a entrevista propriamente dita nem aconteceu. Na sala da direção artística da rádio, João Gilberto, elegantemente num terno preto, gravata, violão na mão, respondia as ingênuas perguntas que lhe formulei cantando músicas que não tinham muito a ver com o que se indagava. O pé em cima da escrivaninha, o entusiasmo natural trouxe um resultado que faria Paulo César telefonar na noite seguinte para o João Féder e esbravejar: - "Ontem, o repórter deste jornal e o João Gilberto riscaram a minha escrivaninha". O Féder bronqueou e eu, timidamente, tentei explicar que nem pus o pé na mesa. Fiquei, apenas de caderninho na mão, tentando anotar tudo que João Gilberto dizia - e que acabou tendo um mínimo registro jornalístico. A emoção que João Gilberto passava em "Chega de Saudade", "Lobo Bobo", "Brigas, Nunca Mais", "Ho-Balala-Lá", "Saudade Fez um Samba", "Maria Ninguém", "Rosa Morena", "Morena Boca de Ouro", "Bim Bom", "Aos Pés da Santa Cruz" e "É Luxo Só" - justamente o repertório de seu primeiro elepê ("Chega de Saudade", MOFB 3073, 1960), já fazia com que uma mocidade que começava a despertar seu gosto pela música sentisse que nele estava a pedra de toque de algo de novo - que se consolidaria com toda uma geração de intérpretes, instrumentistas e compositores que, num curto - menos de 6 anos - espaço de tempo, modificaria toda a nossa MPB. Caboclo do interior, chegado a pouco em Curitiba, tenho certeza de uma coisa: foi ouvindo João Gilberto, em seus 29 anos, falando de seu amigo Jorge Amado - que havia sido padrinho de seu casamento com Astrud Gilberto, da música de Antônio Carlos Jobim - um nome que, na época, também pouco significava - e a admiração por Ary Barroso e Caymmi, estes sim, já famosos - é que me apaixonei definitivamente pela música brasileira. E hoje, com João próximo dos 60 anos - a serem completados no dia 10 de junho de 1991 - e com tantas cifras musicais rolando pelo rio que passou em nossas vidas, ele continua a ser a mais admirada (e mitificada) personalidade da nossa música. E muita gente, aprendeu com ele também a amar a Bossa Nova, e a reapreciar o violão. Um exemplo foi o inesquecível Luciano Lacerda, grande amigo e pesquisador, que depois de chegar a Bossa Nova - para ele (como para o conservador Alceu Schwaab) foi logo entendida em sua dimensão - não teve dúvidas: comprou um pinho e perseguiu até a morte, há três anos, os acordes da batida diferente que João Gilberto trouxe para o som universal. LEGENDA FOTO - Retrato do ídolo quando jovem e do repórter quando magro.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
8
09/12/1990

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