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Aramis

O "Araçá Falado"

"É um filme com a cara e a cabeça de Caetano, no qual ele se expõe, expõe suas opiniões sobre cinema, literatura, música, pintura, sexo, mesmo quando se utiliza de textos alheios, de trechos de obras que ele diz terem marcado sua vida". (Pola Vartuck elogiando "O Cinema Falado", no Caderno 2, "O Estado de São Paulo", 20-12-86). Em 1973, ao lançar "Araçá Azul" (Philips, 6349054), o seu disco mais maldito (tanto é que saiu de catálogo e nunca mais foi reeditado), Caetano fez questão de incluir na capa a frase "Um disco para entendidos". Entendidos, há 14 anos, era entendido também como bissexual - e isto causou pano para muita manga de discussão. O primeiro (e um dos raros) a dissecar a profundidade/propostas de Veloso naquele disco-ruptura foi Affonso Romano de Sant'Anna, que em artigo de página inteira publicado no "Jornal do Brasil" estabeleceu entradas e referências para que se pudesse compreender melhor o vanguardismo da obra. Aliás, foi animado pela repercussão daquele texto que o hoje globalizado poeta-ensaísta-cronista se animaria a reunir outros ensaios sobre música popular e moderna poesia brasileira para publicar um ótimo livro (já em terceira edição pela Vozes). Agora, os cinemas que exibem "O Cinema Falado" (Luz, 2ª semana, 5 sessões) também deveriam colocar uma faixa informativa na entrada: "Um filme para entendidos". Ou, ao menos: um filme para quem tem informações, mesmo que superficiais, sobre o que há de mais consumível na (pseudo) erudição, via cadernos culturais da imprensa nacional (aliás, criticados pelo próprio Caetano, via um de seus atores, numa das mais chatas seqüências do filme). Desde que, numa cansativa e incômoda sessão na madrugada do FestRio (Hotel Nacional, novembro/86), após uma maratona de ter visto oito outros filmes (todos importantes), assisti, pela primeira vez a "O Cinema Falado", achei o filme tão inteligente quanto chato em suas pretensões e incrivelmente uma visualização do que havia sido, auditivamente, o disco "Araçá Azul". O cineasta Neville D'Almeida disse o mesmo e o próprio Caetano, na tarde de 13-02-87, gravando seu depoimento para o Museu da Imagem e do Som - São Paulo, repetiu a respeito: - "Eu acho que o paralelo entre 'Araçá Azul' e 'O Cinema Falado' é pertinente. Reconheci que os dois tinham a mesma natureza: uma vontade real, grande, de instigar o ambiente onde estou. Não gosto de tomar as coisas como aceitáveis apenas porque elas são assim". Como prevíamos aqui, em matéria escrita após a visão do filme (O Estado do Paraná, 25-11-86), "O Cinema Falado" foi o filme que sem concorrer ao FestRio (foi exibido hors concours, numa única sessão às 2 horas da madrugada) acabou sendo o mais comentado da terceira edição daquela mostra que teve quase 400 exibições paralelas. Uma polêmica alimentada já na estréia mundial, quando o cineasta vanguardista Arthur Omar ("Tristes Trópicos", "O Som"), vaiou, gritou e provocou um happening de protesto contra o filme, acompanhado pelo cineasta Carlos Frederico, diretor de oito filmes, também vanguardista mas totalmente desconhecido. A imprensa nacional deu mais cobertura aos protestos de Arthur Omar (talvez pelo fato dele ser mais conhecido), mas Carlos Frederico, ao lado de sua esposa, atriz Isabela (ex-mulher e musa do cineasta Paulo César Sarraceni), no dia seguinte, distribuía um artigo-manifesto, até hoje inédito na imprensa. E muito vem sendo escrito e discutido em torno do filme de Caetano. Nem poderia ser diferente. Suzana Amaral ("A Hora Da Estrela"), sem conhecer o filme, foi a primeira a protestar contra o tratamento promocional que a Embrafilme deu a esta produção, lançando-a antes de outras que se encontravam na fila de espera de exibição. Caetano respondeu agressivamente a Suzana, dizendo que ela "não passava de uma dona-de-casa que deveria ficar em casa passando óleo de peroba nos móveis". Outra cineasta, Vera Figueiredo, reclamou da atenção imensa dada ao filme, fazendo um comentário sensato: - "Se qualquer outro cineasta fizesse o mesmo seria arrasado e não teria nenhuma sobrevida. Mas Caetano é Caetano". Tizuka Yamasaki, habilidosa, foi sutil: - "Caetano sempre foi vanguarda na música e sempre foi um criador de polêmicas. Acho que ele não queria fazer cinema, mas sim abrir mais uma frente de discussão. E conseguiu, o que é muito saudável". A imprensa dividiu-se: Caio Túlio Costa, editor da "Folha Ilustrada" ("Folha de São Paulo", 07-12-86) arrasou o filme. Decio Pignatari, concretista, amigo de Caetano, aplaudiu de pé e fez até um poema (concreto, naturalmente!) saudando o Caetano cineasta. Cacaso (Antônio Carlos de Brito, 42 anos, poeta, letrista, filósofo), foi equilibrado num ensaio de uma página ("Pelo que me falaram", "Folha de São Paulo", 20-12-86), enquanto Pola Vartuck, crítica de "O Estadão" desde 1971, poliglota, uma das mais respeitadas críticas brasileiras, dedicou uma página de elogios ao filme de Caetano ("Hermético e antropofágico: explícito"), sabendo ver o rompimento proposto por Caetano. - "Em suma, 'O Cinema Falado' quebra todos os tabus da luta contra a colonização cultural e reabre a velha discussão sobre o antropofagismo (...). O filme é um acontecimento. Um dos mais importantes acontecimentos do cinema brasileiro desde a eclosão do Cinema Novo - de cujas premissas básicas ele é, sob vários pontos de vista, uma antítese. É um filme que poderá tornar-se um divisor de águas, tal como ocorreu com a Tropicália. Em Curitiba, lançado há dez dias no Luz, "O Cinema Falado" tem tido um público regular - suficiente para justificar uma segunda semana de projeção. Mas apático, sem provocar polêmicas - ao menos até agora e com opiniões restritas a saída do cinema. Quando, naturalmente, o que Caetano gostaria, seria o contrário - bem ao seu estilo de incendiário constante da música e coisas culturais do País.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
2
22/03/1987

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