O NOVO CANTO DE LYRA
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 25 de março de 1973
Dois fatos importantes marcaram, pessoalmente, a presença de Carlos Lyra, em Curitiba, durante uma semana: a decisão que tomou em escrever um livro sobre a sua participação no movimento da Bossa Nova - e que terá o mesmo título de seu primeiro lp - "Carlos Lyra/Bossa Nova" (Philips, 1959) e a conclusão de sua última música, talvez o trabalho mais elaborado e sincero de sua respeitabilíssima carreira. Aos 39 anos (aparência de 30), 15 anos de vida artística algumas das músicas mais bonitas de nosso cancioneiro, e o autor de "Marcha da quarta-feira de Cinzas" é antes de tudo, um homem consciente do papel do artista em seu meio e sua época. De posições firmes, Carlos Lyra não teme afirmar muitas verdades sobre a nossa MPB, desmistificar certos ídolos e, principalmente, ter uma visão dialética do processo histórico da BN. Por isto, sua decisão em oferecer um documento sobre a sua presença em nossa vida artística (1955/73) se constitui em acontecimento musical dos mais importantes. "Não esperem um livro de datas e "gossipes", mas sim um relato sincero do que fui, sou e penso ser dentro de um determinado momento de nossa vida artística" explica Lyra, ao mesmo tempo que garante que "Herói do Medo" - sua ultima composição que dará título ao seu futuro lp (não sabe ainda se na Phonogram ou na Continental, gravadora que já o convidou). Reconhecendo as influencias de Fernando Pessoa (1888-1935), em especial o clássico "Poema em Linha Reta", na estrutura de "Herói do Medo", Carlinhos mostra este trabalho como um novo ponto em seu trabalho: sempre das mais produtivas em todos os ciclos que atravessou (de "Lobo Bobo" a "Minha Namorada" com momentos políticos - "O Subdesenvolvido" e Românticos) . Em primeira mão e apenas como um documento - eis aqui a letra de "Herói do Medo" que independente da música, se constitui num trabalho que valoriza Carlos Lyra como um poeta de letras maiúsculas.
Herói do medo/Não tenho medo
Do próprio medo que me torna herói
Com minhas regras/Eu faço o jogo
E logro um único parceiro: eu
Eu sou o primeiro/ E sou o último
Mas não assumo condição humana
E me proclamo /Meu soberano
Na origem Despótica de um Deus.
II
Herói do medo/Escrevo as tábuas
Da autoridade que repousa em mim
Pra que na Terra/ Não a despertem
Vou caminhando, em sonho, sobre as águas
Meu rastro assombra /Os cães de fila
E renda as preces das mães de família
Mais prevalece/ Minha arrogância
Entre animais, mulheres e crianças.
III
Herói do medo/Firo e difamo
E me alimento de fraqueza humana
Com altivez/Eu dou e tomo
E não recebo nunca o oferecido
Ninguém me dá/Do que sou dono
Porque eu possuo sem ser possuído
Se basta olhar-me/Em seu reflexo
Porque integrar-me inteiro no Universo?
IV
Herói do medo/Odeio a mãe
Por ter parido/E odeio mais a amante
Por ter amado/Que há de sofrer
Pra que se avilte e há de morrer /pra que eu
Me ressuscitei em liberdade
Porque entre dois amei a mim somente
Porque as mulheres são para herói
Um mero passatempo de covardes.
V
Herói do medo/Imolo a ultima
Que aplaca a vida intima do herói
E aos vencidos (compatriotas)
O meu desprezo, porque nas derrotas
não movo um dedo/Por impedir
Com os vencedores eu me identifico
E justifico conquistadores
Por seu direito extremo de oprimir
VI
Herói do medo/Exerço o Mundo
E a humanidade sem lhe ver a face
Pretendo ao prêmio/Sem correr riscos
E conquistar a glória em luta fácil
De comodismo/Desta moral
Falta de ação mais pródiga de gestos
Lanço um olhar/Ao meu passado
Me paraliso e me converto em sal.
LEGENDA FOTO 1- Lyra, a musica inédita.
LEGENDA FOTO 2 - Keila, nova voz.
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