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Aramis

Os belos sorrisos que Miuchinha sabe cantar

Por uma destas (boas) coincidências musicais, dois discos trazem as vozes das irmãs de Chico Buarque. Assim como CBH foi, antes de tudo, sempre, o compositor maior da resistência lírica-política nestes últimos 25 anos, suas irmãs nunca pretenderam a condição de vocalistas maiores. São moças que cantam bonito, afinadamente, dentro de uma linha de brasilidade, de raízes (Christina) ou, especialmente, num espaço maior, com fluídos da Bossa Nova pela própria convivência familiar com João Gilberto (Miúcha). Mesmo Ana de Holanda, cuja audácia vocal ficou apenas numa única experiência (Estúdio Eldorado, 1982) também buscou um repertório consciente. O retorno de Miúcha a gravação, após mais de dois anos de ausência, resultou num álbum extremamente bem produzido, com arranjos distribuídos entre Luiz Cláudio Ramos, Cristóvão Bastos e Helvius Vilela. Um trabalho amoroso, mergulhando num repertório amplo, de várias fases - e cujo corte final, para a seleção das faixas que caberiam no espaço do disco - esta presença vocal de Miúcha estará, por certo, entre as melhores do ano. Por exemplo, a latinidade do compositor cubano Pablo Milanez, co-dividindo a faixa de abertura ("Buenos Dias, America") e também autor de "Para Viver", já dá um toque continental a um projeto que não poderia dispensar uma revisitação a Bossa Nova ("Saudosismo", 1969, Caetano Veloso) ou a suave homenagem que Vinícius de Moraes / Mutinho, nos felizes tempos dos circuitos universitários, dedicaram a sua classe: "Valsa dos Músicos". "Nós somos uma só tristeza / a beleza é a nossa eterna namorada Sempre a procura de um lugar / sem hora de partir Para um lugar qualquer de onde subir Para o infinito astral / Pelos degraus de um som De onde se jogar, voa sumir Quem sabe até morrer, sonhar, dormir". Se nos shows que fará em Curitiba e Londrina, Miúcha, por certo incluirá as músicas mais conhecidas - o que sempre estabelece empatia imediata para com o público - não deixará também de mostrar as novas canções que gravou neste seu álbum (que estará à venda no hall do teatro). E são canções belíssimas, mostrando especialmente uma nova fase do poeta e letrista Paulo César Pinheiro, que em parceria com o seu velho amigo Guinga (cirurgião-dentista de profissão, mas antes de tudo um criador de harmonia, como o refrão: "Por gratidão / Eu trato muito bem do meu coração / porque ele sempre me deu toda emoção / Para encarar a qualquer ilusão"). "Porto de Araújo" é uma devolução àquilo que quase desapareceu na música: a história de despedida do marinheiro partindo para longas aventuras. "Non Sense" apesar do título, tem uma bela imagem ("O verso em mim que geme / Por quase toda a si se aflige e treme"). A quarta parceria de Paulinho César Pinheiro e Guinga é um choro gostoso, já conhecido, que se constitui num dos momentos altos do disco: "Chorando as Mágoas", mais uma expressão do romantismo da dupla ao dizer: "Chora coração / Eterno sofrer / A desilusão que você me causou / Por você carrego muitas mágoas". Com outro parceiro, o tecladista e arranjador Cristóvão Bastos, Paulinho fez "Iaiá", partindo de uma feliz idéia: o simbolismo de um corpo de menina com as frutas mais desejadas: "Quero tocar nessas amoras que em teus seios há Quero afagá-las entre os dedos Sentindo a cica dos abis e me pegar (...) Que bom Iaiá / Esse cheiro de maracujá Quero tomar teu beijo e ver que gosto dá Pois sangra teu lábio rubro igual pitanga Lá deve ter o mel da manga Laranja doce no caminho Eu quero ser teu passarinho, Iaiá, Teu sabiá, teu sabiá". xxx Entre as regravações - poucas e muito bem escolhidas - destaca-se a nova leitura que Miúcha soube dar ao "Anjo Exterminador" (Macalé / Wally Salomão), composta em 1972 - em uma época de desbum total, no auge da repressão, mas que, como uma obra de vigor, chega hoje, 17 anos depois, ainda com seu encantamento. E outro momento musical que resiste ao tempo é um dos clássicos de Duke Ellington (1899-1974), "Solitude" - parceria com Lange / Millis - que Miúcha aprendeu a curtir nos anos em que morava em Nova Iorque, quando esposa de João Gilberto e convivendo com os melhores músicos.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
04/07/1989

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