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Aramis

Os discos do Paraná (II)

Há 13 anos, o publicitário Marcus Pereira, então dono de invejadas / disputadas gordas contas em São Paulo, inovava nos brindes de fim de ano: ao invés de caixas de vinho, "scotch" ou cestas de Natal (bons tempos aqueles!), produzia um elepê intitulado "Onze Sambas e Uma Capoeira", onde gente amiga - e então desconhecida (Chico Buarque, Toquinho, Carlos Paraná etc.) reunia-se para homenagear um grande amigo - Paulo Vanzolini, misto de cientista (diretor do Museu de Zoologia da USP há 17 anos), compositor e boêmio. A repercussão foi tanta que discos-brindes se sucederam - e outras empresas adotaram a fórmula. Marcus acabou fechando a agência e se tornando o mais nacionalista de nossos produtores fonográficos, chegando hoje a um prestígio grande, prêmios - e uma dívida que já passa de US$ 1 milhão. Na mesma época em que Pereira faz seu primeiro lp-brinde, em Curitiba um jovem estudante começava a fazer suas primeiras músicas, sozinho ou em parceria com uma das mais estimadas figuras que a nossa noite já conheceu - o Lápis (Palminor Rodrigues, (1941-1978). Nome do jovem compositor: Paulo Vítola. Neste Natal, a Múltipla Propaganda & Pesquisa, agência que em 7 anos conquistou uma posição de destaque no mercado regional, acumulou prêmios e vem atendendo com muita eficiência importantes clientes, investiu uma razoável importância num brinde destinado a ficar: o lp "Onze Cantos", primeiro longa-duração para levar a todas as partes um pouco do imenso talento de Paulinho Vítola e seu parceiro Marinho Galera. Trabalhando juntos há mais de 4 anos, do que já resultaram dois espetáculos musicais - "Diário de Bordo" (o melhor produzido em 1976, em Curitiba) e "Curitiba Velha de Guerra" (1978, trabalho na parte teatral com coordenação de Antônio Carlos Kraide), Paulinho e Marinho têm músicas para muitos discos. E justamente por terem uma quantidade expressiva de composições, puderam selecionar as 11 que julgaram mais significativas para este "Onze Cantos", gravado no Sir - Laboratório de Som & Imagem, e que sem favor nenhum pode ser incluído entre as melhores produções fonográficas do ano. Enquanto Paulo Vítola, após um período na produção na TV Iguaçu, passou a ajudar muitas agências de publicidade a conquistar prêmios e fazer campanhas excelentes, Marinho tem-se dividido em vários trabalhos artísticos, nos últimos 3 anos, coordenando regionalmente o Projeto Pixinguinha. Paulista de Araraquara, 31 anos, jeito simples e bom, tem um relacionamento no meio musical como poucos e, se quisesse, poderia já ter insistido para nomes de grande "Ibope" no meio fonográfico gravarem suas músicas. Mas a sua modéstia (e uma certa timidez) faz com que até agora tenha meio em sigilo suas composições vigorosas, suas harmonias cuidadosas - às quais o lirismo de Paulinho Vítola veio se encaixar como uma luva. Em "Diário de Bordo" (Teatro Paiol, novembro/1976), emocionavam pelo bom gosto das músicas, profissionalismo e, principalmente, vontade de desenvolver uma linguagem musical de raízes - preocupação que já havia feito Vítola e Marinho, um ano antes, se integrarem ao Mapa - Movimento de Atuação Paiol, do que resultou um elepê desigual pela variedade de compositores / intérpretes reunidos, mas válido como documento. Alguns anos antes - 1972, para ser exato, Paulinho havia criado as músicas para "Cidade Sem Portas", primeira tentativa de um musical - histórico - didático curitibano, que, até hoje, detém o recorde de público do Paiol, onde teve duas longas temporadas, estendidas posteriormente (1973) aos principais bairros de Curitiba. No ano seguinte, novamente um trabalho do jornalista Adherbal Fortes de Sá Jr. Paulinho desenvolveu a parte musical para "Paraná, Terra de Todas as Gentes", superprodução que, a 12 de dezembro de 1974, marcou a inauguração do auditório Bento Munhoz da Rocha Neto, movimentando no palco mais de 150 pessoas, sob a direção de Maurício Távora. O amadurecimento de Paulinho, como poeta / letrista, e Marinho, como violonista / compositor / cantor, pode-se sentir em "Onze Cantos". Entre as muitas definições que se poderiam dar a esta produção está a de que é "um "disco feito com amor". Com um pouco de xenofobismo, pode-se, mesmo, classificar de um registro de músicas de uma cidade, tornando real o ensinamento do mestre: se queres ser universal, canta a sua aldeia. No curto - mas objetivo texto para o encarte que acompanha o disco, seus autores dizem: "Acreditar em suas próprias raízes. Cultivar os seus próprios valores. Saborear o fruto da confiança. E seguir em frente, pois a vida é o passo que se caminha, o amor que se ama, a alegria que se ri". E, realmente, cada um dos "Onze Cantos" traduz esta filosofia. Paulinho se reservou a produção executiva, discreto acompanhamento ao violão e vocais em algumas faixas, deixando para Marinho a parte vocal. Sem pretender ser um cantor - dentro do conceito tradicional - Galera "diz" as músicas de forma suave, agradável - no que contou muito os arranjos adequados, a competência dos instrumentistas arregimentados para as diversas sessões em que se sucederam as gravações das faixas. Em "Noturno", Marinho / Vítola já convidam o ouvinte a acompanhar para conhecer "a pulsação desta cidade / quando está certo / eu nem sei / se a gente ainda vai pegar aberto / o bar OK". Como Itapira, a cidade natal do poeta Drummond, hoje é "um retrato na parede", o bar OK é uma saudade de nossa juventude: o botequim simpático e acolhedor de Alcides, que funcionou por anos na Praça Osório e, já na década de 60, se transferiu para a Travessa Jesuíno Marcondes, hoje não mais existe. Pioneiro do bife com queijo, do xissalada, acabou como tantos outros endereços de uma Curitiba que vai morrendo um pouco a cada anoitecer, desaparecendo com os nossos amigos mais queridos, que partem, que se separam. Essas imagens é que dão às músicas de Paulino / Galera um sentido de profunda emoção, pois no regional conseguem ser universais. Assim como em "Receita" (gravado por Paulo Chaves, compacto Chantecler, 78), trabalhavam com as palavras, numa pesquisa estética sem o hermetismo dos concretistas / vanguardistas, "Veracidade" é uma inteligente utilização das palavras ("se você quer ver a cidade / precisa conhecer / o que eu bebo no sebo dos bares / o que eu quero no lero dos pares / o que se enrola se rala e se embola em cada cachola / é veracidade / o que se engrola e se caraminhola se baba na gola / é ver a cidade / é veracidade"). Autor de uma marcha-rancho antológica, parceria com Lápis ("Dia de Arlequim"), Paulo Vítola volta ao lirismo carnavalesco em "fim de fevereiro" ("no fundo da noite no fim de fevereiro / um surdo a brincar de arlequim é brincadeira / (...) vestiu o disfarce de guizo agonia, mentira e cetim / e levou pra avenida os losangos doidos do seu arlequim"). A maioria dos 11 cantos é resultado de "Diário de Bordo" e "Curitiba Velha de Guerra" e, por isto, possuem uma espontânea identidade com a cidade - não Curitiba, especificamente -, mas a vida de uma cidade, com seus bares, encontros, desencontros - principalmente porque tanto Paulinho como Marinho têm assumido suas barras, medos, anseios e, na juventude dos 30 anos, carregam o amor a busca, e a esperança. Irônicos quando necessário ("Rockoisa"), mas profundamente emotivos como em "Anúncio classificado" ("Precisa-se de criança / que tenha cara de anjo sujo / de geléia de uva / que se possa limpar em noites de chuva / quando o céu despenca aos borbotões / e se adormece só / entre agulhas e botões"). As imagens de uma infância, quando ainda havia quintais, espaços para peladas, bolas de gude, pião, estão, de certa maneira, em "Quatro tempos" ("no arvoredo / um alarido clareando o dia aquecia a rua com blusas de lã / então se conhecia a voz / a voz dos habitantes de cada mão / (...) meia-noite a rua é um rio denso / rio denso / bebebendo a Lua"). A boêmia musical do "beguine do mercado" ("danças / e tranças / boleros / verduras / sonho / jasmins / legumes / plantas / lembranças / estrelas / eras maxim's) completa-se com "Meia-porta" ("no último bar / as cadeiras de um fundo do mundo / virado de pernas pro ar / engolindo a aurora / a lata de lixo do lado de fora / é um bicho acordando / com fome das sobras / que a gente não come / ou espalha com a mão"). "Balaio cheio" é uma espécie de catarse sem grilos psicanalíticos ("a caixa do pensamento é um balaio cheio / aí se batesse um vento / aí se caísse um raio e partisse o balaio no meio / todo mundo podia se lambuzar no meu recheio / aí"). Mas, na descoberta do encanto de cada canto, a emoção maior - hoje, 4 anos após ouvi-la pela primeira vez, no "Diário de Bordo", é "Águas Claras", talvez - e isto é uma opinião pessoal - o momento mais feliz deste casamento musical Galera / Vítola. Fernando Montanari, tecladista de muita quilometragem de noite curitibana, ao piano-rhodes, não poderia fornecer o clima mais propício para Marinho dizer, com extrema sensibilidade, esta letra de múltiplas idéias / pensamento: "até as águas claras / as águas raras / até a verdade / que esse rio já sofreu a tempestade / e como o céu venceu a noite negra / veja os cigarros e a cerveja / as histórias veja as comportas / folhas mortas linhas tortas / águas curvas turva os sinais / o que mais quero é saber se o espelho / em que você se olhe se veja e se molhe / e beba até que me veja / aprenda a me viver depois me ame / aprenda a ser você depois me seja / até um dia / até as águas claras / as águas raras até amanhã". Editado inicialmente como brinde de fim de ano, "Onze Cantos" não pode, de forma alguma, ficar restrito apenas aos privilegiados que receberam o disco da Múltipla.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
6
04/01/1980

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