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Aramis

Os seios gentis e um pato indigesto

Pela segunda vez, Antônio Carlos Kraide mergulha numa criação coletiva voltada para uma realidade que curte muito: a cidade de Curitiba. Em "Dos Seios Desta Mãe Gentil" (Guairinha, até o dia 2, 21h30 min) procura fugir do esquema "histórico-didático" que marcou as experiências anteriores em torno do mesmo tema, desenvolvidas com patrocínio oficial - "Cidade Sem Portas" (1972), texto de Paulo Vitola e Marinho Galera (1980). Em "Curitiba Velha de Guerra (1978), experiência anterior de Kraide, num trabalho coletivo, embora inexistente uma preocupação historico-analitica, a peça apresentava seqüência: através dos bares, em suas diferentes categorias sociais, Kraide e sua equipe (re)contava, com bom humor e ternura, uma visão da cidade. A peça - o melhor espetáculo de 1978 - tinha a presença de um ator hoje consagrado nacionalmente, Ariel Coelho (por sinal, volta a Curitiba, com "Cabaré Valentim", a partir de amanhã, no miniauditório Glauco Flores de Sá Brito) e as esplêndidas músicas de Paulo Vitola/Marinho Galera, algumas das quais aproveitadas posteriormente no lp "Onze Cantos", lançados em fins do ano passado e a melhor produção fonografica realizada no Paraná. Agora, em "Dos Seios Desta Mãe Gentil", Kraide optou por um esquema fracamente anarquico-crítico. A partir da utilização do travesti e da quebra de ritmo/seqüência nos diversos "tablaux" com a qual construiu a peça, Kraide realiza um espetáculo de altos e baixos, com momentos fascinantes e outros plenamente dispensáveis. A parte musical, confiada a Rosy Grecca, se esgota nos primeiros momentos. Afinal, nenhum dos interpretes é cantor e embora se esforcem, torna-se difícil entender as letras. Além do mais, Rosy Grecca vem sendo obrigado a uma super produção, que põe em risco a sua capacidade criativa: nem bem tinha aprontado o pretensioso "Veias Abertas", já estava comprometida com Kraide em fazer 11 canções para esta peça. O resultado é que o seu (jamais negado) talento corre o risco de uma exaustão, provocada pela necessidade de atender todas as solicitações que lhe fazem. Mas os méritos de algumas músicas de Rosy são inegáveis. E Cesarti, um dos mais criativos sonoplastas de nosso teatro, montou uma trilha dinâmica, com musica incidental perfeitamente ajustada que dá o "swing", ao espetáculo igualmente a iluminação de Beto Bruel é criativa e funcional. Independente de uma análise pormenorizada das propostas-quadros (que fica para outra ocasião), deve-se destacar o elenco de talentos que Kraide, mais uma vez, soube valorizar: Fernando Marés, Paulo Maia (também cenógrafos), Juba Machado, Victor Eisemberg, Pedro Limaverde, Luís Carlos Fregonese e o próprio Kraide - incrivelmente anárquico, valorizam os múltiplos personagens, em interpretações libertas, movimentadas. São atores de força e talento, que merecem todo o estimulo. E que tiveram a felicidade de contar para este trabalho com a colaboração da coreógrafa Eva Schul, que orientou a expressão corporal no sentido de fazer a presença física, de cada um, funcionar como um elemento de graça, humor e mesmo crítica. A soma de tantos aspectos positivos neutraliza os (pequenos) pecados cometidos, as repartições de alguns momentos. Afinal, numa cidade onde faltam espetáculos vigorosos, uma experiência como a que Kraide realiza - sem "mamar" nas tetas oficiais - merece estímulo. A sua maneira, ele vê Curitiba - sua gente, seus problemas, e faz um espetáculo que merece ser visto, debatido e aplaudido. Xxx Por coincidência, nesta mesma semana em que Kraide estreou "Dos Seios Desta Mãe Gentil", o superstar Paulo Autran volta a Curitiba para mais um evento de grande repercussão nos meios mundanos: a temporada da comediota "Pato Com Laranja" (Guairão, ainda hoje, 20 horas). É fácil entender porque apesar dos ingressos a Cr$ 350,00, a lotação do grande auditório é o suficiente para deixar o produtor-ator satisfeito. Afinal, Autran é um dos nomes mais conhecidos do teatro brasileiro e que após fazer uma telenovela ("Pai Herói") só teve o seu público aumentado. E até num comercial que fez para a televisão acabava dando o recado do "Pato Com Laranja". A peça teve longa temporada no Rio, agradou a faixa de público que sempre vibrou com as realizações (sic) de Oscar Orstein et caterva no Copacabana Palace preenchendo a receita: diversão - um toque de erotismo-humor bem comportado. Paulo Autran já fez coisas relativamente sérias. "Morte e Vida Severina", do poema de João Cabral, ou "Edipo Rei" - ambas com patrocínio do governo do Paraná, na época em que sistematicamente vinha buscar gordas e generosas subvenções oficiais, são exemplos disto. Ator veterano, competente, capaz de encher teatros. Autran é sempre garantia de público. É fácil gostar dele. Simpático, comunicativo, brilhante. Não é sem razão que dondocas da sociedade disputam o privilégio de convidá-lo para sofisticados jantares após as sessões. Pena que este público jamais se interesse em assistir uma peça de teatro que não tenha um superstar como Autran no elenco. Ele, afinal, não tem culpa disto. São mais de 30 anos de carreira e um justo renome nacional. Entre uma montagem clássica e um trabalho na televisão, porque não utilizar o prestigio que conquistou e montar peças digestivas? Portanto, está explicado porque "Pato Com Laranja" faz sucesso. Um argumento pífio, antigo e superado - o marido traído que reconquista a mulher através de um jogo inteligente; duas mulheres bonitas e vestidas elegantemente (Irene Ravache/Karim Rodrigues), uma personagem divertida (interpretada por Hedy Siqueira, a melhor do elenco), e o "conquistador" Júlio (Márcio De Luca), caricato. Uma comédia inglesa, que faz sucesso em Londres, Nova Iorque e na Vila dos Anzóis. Afinal sempre dá o publico que "trabalha" o dia todo, que curte os nomes famosos e aprecia um humor que não agrida, piadinhas bem comportadas e até um final feliz, onde todos vão felizes para a cama. Rir é o melhor negócio. Especialmente para quem sabe faturar com isto. Autran, ator excelente, grande curriculum, sabe disto. E tem argumentos para justificar - e plenamente as motivações "culturais" de um texto como "Pato com Laranja" de William Douglas Home. O grande público - especialmente aquelas senhoras que adoram mostrar caros vestidos no hall do teatro -tem "frissons" com o espetáculo, ao lado de bem sucedidos maridos, sorrindo das situações não tão distantes de suas realidades. Mas quem acredita em teatro como veiculo de idéias, como força criativa, como estimulo ao raciocínio fique distante de "Pato Com Laranja" e outras receitas semelhantes. Afinal, a não ser que tenha muito tempo livre para perder, tal refeição só lhe dará uma indigestão ou desarranjo intestinal. Apesar dos confeitos e enfeites com que o prato (ou o pato) é servido. Mas já dizia Zulmira, a "tia" de Stanislau Ponte Preta: beleza não se põe na mesa. Nem mata a fome de ninguém.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
9
26/10/1980

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