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Aramis

Peças digestiva, cerebral e tradicional estão em cartaz

Por uma feliz coincidência, a normalmente fraca programação teatral da cidade oferece neste fim-de-semana três espetáculos diferentes - e que além de se destinarem a públicos específicos mostram que é possível ampliar as opções. Quem busca um espetáculo apenas divertido, como entretenimento, tem "O Vison Voador" dos americanos Ray Cooney e John Chapman (auditório Bento Munhoz da Rocha Neto, 21h, ingressos a NCz$ 6,00 e NCz$ 5,00), quase um vaudeville, direção de Odavlas Petti (que no passado já fez coisas melhores) e elenco em que reaparece até a ex-vedete Marly Marley, hoje sra. Ary Toledo - que bancou o custo deste espetáculo. Numa linha totalmente oposta - uma peça-tese, de idéias profundas buscando um autor desconhecido no Brasil - o escritor, músico, ensaísta, ator francês Boris Vian (1920-1959), "Nenúfar", de Marcelo Marchioro (também diretor) - em temporada no Sesc da Esquina (quinta-feira a domingo, 21h), é daqueles espetáculos densos. Com três horas de duração, elenco de novos intérpretes - calcado numa segura coreografia e expressão corporal desenvolvida por Sandra Zugman, trilha sonora montada com gravações de Duke Ellington (1899-1974) - um dos três maiores nomes do jazz, que Vian adorava - é para platéias especiais mas que chega a uma faixa jovem que anteriormente já soube entender (curtir) dois outros difíceis espetáculos que provaram a competência de Marchioro: "Do Outro Lado da Paixão", inspirado em textos e vida de Lewis Carroll (1832-1898) e "Eu, Feuerbach", do alemão Tankred Dorst (e que lhe valeu o troféu Gralha Azul, como melhor direção). xxx "Solness, o construtor" (auditório Salvador de Ferrante, até domingo, 21h, ingressos a NCz$ 8,00) é o teatro tradicional, a começar pelo nome de Paulo Autran, 67 anos, 40 de teatro, o maior nome da cena brasileira e cuja popularidade através de telenovelas em que bissextamente atua (mas as quais, jura, não voltará mais), faz com que uma outra faixa de público lote os espetáculos que faz. Homem de teatro, competentíssimo, Autran é garantia de sucesso em qualquer peça em que apareça, o que o faz um profissional dos mais procurados. É de se perguntar, quantos das espetelecadas espectadoras e sisudos cavalheiros que na noite de quarta-feira, 12, na pré-estréia da peça, ali estariam se não fosse a presença de Autran no elenco, como o trágico personagem de Ibsen? Do elenco original, que no ano passado estreou "Solness, o Construtor" em São Paulo, só restaram Autran e a co-produtora Denise Weinberg - mas isto não prejudicou o espetáculo, pois foram encontrados bons substitutos. O veterano Xandó Batista, como o idoso Knut Brovik, mesmo aparecendo apenas alguns minutos no início do primeiro ato, é seguro e competente e Walderez de Barros - que substituiu a Karin Rodrigues (parceira habitual nas peças que Autran monta e atua) também consegue sair-se bem de uma personagem ingrata, a opaca, frígida e irritante Aline Solness, esposa de Halvald Solness. Escrita em 1892, quando Henryk Ibsen (1828-1906), aos 64 anos, já era um dramaturgo consagrado em toda a Europa, "Bygmester Solness" não é, em absoluto, um dos textos fáceis de sua grande obra - o que talvez explique o fato de ter, até 1988, permanecido inédito no Brasil. Aliás, montar Ibsen é projeto que exige audácia e competência, pois assim como suas peças são densas, ricas de conotações sociais (e simbólicas), exigem profissionalismo total e, principalmente, bons recursos. Esta produção do grupo Tapa - da qual o diretor Eduardo Tolentino e a atriz Denise Weinberg são fundadores (1974), em relação a outras montagens de Ibsen feitas no Brasil - da grandiloqüência de "Peer Gynt" (encenada em São Paulo, há 12 anos) ou mesmo "As Colunas da Sociedade" (montada no TCP, em 1966, quando Cláudio Corrêa e Castro residia em Curitiba), parece tímida. Com apenas seis personagens, dois cenários - o primeiro claustrofóbico e o segundo, pobríssimo em termos visuais - tem sua força nos diálogos. E nas peças de Ibsen o texto é fundamental, especialmente para passar informações de todo um universo dramático (em "As Colunas da Sociedade", quem se distraía na primeira cena, um blá-blá intenso de várias mulheres, ficava até o final sem entender a trama). Centrando sua ótica em torno da ameaça do novo - a juventude, e a insegurança do velho, Solness conserva, passado um século de quando foi escrita, elementos de empatia e emoções, especialmente pela sinceridade do tema-base (ensaístas identificam muitos aspectos autobiográficos na composição do personagem). Como lembrou Jefferson Del Rios, há contemporalidade no texto: Solness é o protótipo da ganância absoluta. Construtor imobiliário bem-sucedido, visto com inveja e temor, encastela-se na fortuna e no renome sem dar oportunidade a ninguém. Com a vida familiar reduzida ao ranço frígido da mulher, apavorado pela lembrança dos filhos mortos, impedindo a ascensão do assistente, Solness é a encarnação viva e trágica disto que se aposta como a solidão do poder. Ao seu universo fragilizado - temendo que "os ventos da sorte mudem" e vendo na juventude o inimigo - chega, justamente um sonho do passado: a irrequieta Hilda Weiner, que, 10 anos antes, conheceu pré-adolescente e a quem jurou amor eterno. Hilda - interpretada por Denise Weinberg - é o ponto de rompimento, uma espécie de consciência falante no homem idoso. A interpretação dada por Denise é contraditória: alguns críticos enalteceram a linha que deu à personagem, procurando ao invés da caricatura da juventude, a "energia da vitalidade em repouso" (Almar Labaki, Folha de São Paulo). Mas também Hilda não tem o freador de uma jovem de 22 anos, como se poderia esperar e ao espectador mais exigente (e conhecedor de teatro), se pergunta: como seria a presença de uma atriz da geração de Giulia Gam, por exemplo, neste personagem tão denso, forte e importante? Paulo Autran, como sempre, está tranqüilo ("Existe nele uma irresistível combinação de técnica e pulsação viva do momento" escreveu Del Rio, no Estado de São Paulo). Tolentino conseguiu uma direção equilibrada, embora com marcações tradicionais, evitando a trilha sonora e conseguindo bons efeitos de luz na passagem do primeiro para o segundo ato - numa substituição ao intervalo. Denso, profundo e fazendo o espectador refletir, "Solness, o Construtor" é um espetáculo que justifica sair de casa e pagar os NCz$ 8,00 para assisti-lo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
14/04/1989

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