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Aramis

Pelle, a proximidade da emoção

"Minha infância está presente É como se fora alguém. Tudo o que foi nesta noite Eu sei, é dela que vem" Toada, Emílio Moura (1921-1971) Ingemar e Pelle não são apenas próximos por serem escandinavos. Os suecos Ingemar de "Minha Vida de Cachorro" e Pelle Karlson de "Pelle, o Conquistador" (Cine Bristol, 4 sessões) são meninos, loiros, bonitos, sentimentais, que levam o espectador às lágrimas. Ambos representam a vida que está por vir e a esperança de todos nós. Estabelecem, portanto, uma ponte para o futuro e só isto já os torna da maior empatia. Não bastaria, entretanto, apenas o carinho e a simpatia infantil para fazê-los intérpretes de dois filmes que acumularam premiações e encantaram milhões de pessoas em todo o mundo. Eles surgem num universo universal - no qual as distantes, frias e até agrestes aldeias em que Ingemar vive suas (des)venturas no interior da Suécia ou a fazenda numa árida região, à beira do oceano em que o pequeno imigrante sueco Pelle começa a descobrir a dureza da vida, a maldade dos homens - mas também encontra em si as forças para partir para novos dias - se aproximam, maravilhosamente, do universo geográfico de todos nós. Tanto é que a partir dos circuitos europeus de festivais, sucesso no Estados Unidos, indicações (e premiações a "Pelle") ao Oscar confirmam o óbvio! Cinema é, acima de tudo, a emoção e o velho Tolstoi tinha toda razão: se quer ser universal cante a sua aldeia. Fale de seu pequeno e pessoal universo, mas com o coração e a sinceridade, que o mundo entenderá. "Minha Vida de Cachorro" (Suécia, 1987, de Lasse Halstrom) foi o 6o. classificado entre os 10 melhores filmes exibidos em Curitiba no ano passado. "Pelle, o Conquistador" - Palma de Ouro em Cannes-88, Oscar de melhor filme estrangeiro-89, inúmeras premiações aos atores Max Von Sydow e ao garoto Pelle Hevenegaard, é a primeira grande estréia do ano. Prejudicado pela época de férias, pouco propícia à programação de filmes de arte inéditos, não encontrou, infelizmente, o público necessário para garantir uma segunda semana. Existe já sua versão em vídeo (Alvorada), mas que não se pode recomendar a quem ama o cinema. Na tela reduzida, sem as definições de cores e iluminação da antológica fotografia de Jorgen Persson, se perde um dos aspectos (fundamentais) que fazem de "Pelle" uma obra-prima: as imagens cromáticas, a composição de cada seqüência, que possibilitaria a ruptura de inúmeros fotogramas como verdadeiros trabalhos (autônomos) de arte. A composição das cenas, o uso das cores, as imagens que a câmara de Persson obteve fazem com que apenas dois outros filmes, de momento, ocorram como exemplos de uma fotografia tão plasticamente perfeita: a de Gerry Fischer em "O Mensageiro" (The Bo-Between, 1971), de Joseph Losey (1909-1984) e a de Sacha Vierney para "O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e Seu Amante" (The Cook, The Thief, His Wife & Her Lover, Inglaterra, 1989), de Peter Greenway (programado para lançamento pela F.J. Lucas ainda neste trimestre). Obviamente, que ao menos 20 outros exemplos de trabalhos perfeitos em termos de imagens poderiam ser lembrados, mas ficamos com estas referências, para destacar a importância de "Pelle, o Conquistador" ser apreciado na tela ampla. Além da fotografia perfeita de Persson, o diretor Billie August foi buscar em Anna Asp (que fez a direção de arte de "Fanny e Alexander", de Bergman) easegurança para conseguir dar a cada instante deste filme de 150 minutos uma unidade visual perfeita. Com muitas seqüências em exteriores - e os interiores humildes (a estrebaria onde Pelle e seu pai, Lasse, vivem; a casa da viúva, a escola rural etc.) resplandescem, entretanto, de uma luminosidade notável. Nos exteriores, inclusive nas seqüências de inverno - com a bruma, o vento, os maremotos na praia selvagem - a dimensão de imagens se completam, lembrando outra obra-prima contemporânea, "Figuras da névoa" (Landscape in the Mist/Topio Stin Omichili), 1988, do grego Theo Angelopoulos (ainda sem previsão de exibição no Brasil), no qual a fotografia de Giorgio Arvanitis, também emoldura uma história que tem em crianças a sua comunicação/emoção com o espectador: dois irmãos em uma longa viagem de Atenas à Alemanha na busca de um pai inexistente. Em depoimento a Michel Rebichon da Revista "Studio Magazine" (Paris, no. 19, novembro/1988), Billie August, 42 anos, citou "A Estrada da Vida" (La Strada, 1954, Frederico Fellini) como filme que lhe marcou profundamente. Filho de um psiquiatra, órfão de mãe (que morreu vítima de câncer, quando ainda era garoto), estudou desenho industrial mas na Escola Christer Stroholm, em Estocolmo, começou a se interessar por fotografias ("minhas primeiras fotos, de naturezas mortas, eram muito naifs..." diz), numa formação visual que (a exemplo do inglês Peter Greenway, também artista plástico) o faria ser tão meticuloso na composição das imagens de seus filmes. Em dois filmes do inglês Kenneth Loach, 54 anos, um dos mais sérios (embora desconhecidos entre nós) cineastas ingleses encontrou um cinema vigoroso, especialmente em "Kes" (1969) e "Vida em Família" (Family Life, 72, a única de suas obras exibida comercialmente no Brasil). Esta assumida influência também explica uma linha clara, linear, da forma com que desenvolveu o roteiro mostrando tanto o lado social, das duras condições sofridas pelos imigrantes suecos na Dinamarca do início do século, ao lado do profundo olhar humano dos personagens - o velho Lasse (Sydow, no melhor trabalho em sua longa carreira), Pelle e do amigo Erik, o sueco que sonha em emigrar para a América e que acaba idiotizado devido a um acidente. Cada personagem de "Pelle, o Conquistador" adquire aquela empatia que equilibra a emoção, o sentimento e a reflexão - dando a universalidade do tema. Foi numa obra clássica da literatura dinamarquesa, de Martin Anderson Nexo (1867-1954), que Billie encontrou o argumento para o filme. Publicada a partir de 1905, "Pelle" é formado por quatro volumes, claramente autobiográficos de Martin Nexo, nos quais descreve sua infância (período utilizado por August), a mais bela e poética. Depois, vem sua formação política, sua vida - em textos nos quais já não há, segundo o próprio Billie August, a mesma pureza da primeira parte. No último volume, Pelle se torna um líder sindical. A obra é comparada aos grandes romances de Victor Hugo e Charles Dickens. É justamente a simplicidade, a ternura das memórias de uma crinça - aprendendo a ver o mundo, sua crueldade, seus desejos, sua ambição, é que tornam plena de emoção cada seqüência. Já na abertura, ainda no barco que os conduz a um porto da Dinamarca, o emigrante Lasse diz a Pelle, seu filho pequeno: "Se você quiser, pode continuar o mundo inteiro." A vida é dura! Na fazenda dos Kongstrubs, há o trabalho pesado, o preconceito sofrido pelos suecos, as condições subumanas de vida - mas o menino Pelle - como o seu conterrâneo Ingemar em "Minha Vida de Cachorro" - aprende a buscar uma esperança, um olhar no amanhã. Sua amizade com o garoto deformado, bastardo do cruel proprietário da fazenda; a solidão de sua mulher, alcoólatra; a maldade do aprendiz - cargo que, no final, ele iria ganhar mas que recusa pelo desejo de partir na conquista do mundo - como propõe o próprio título. Em comparação a "My Life as a Dog", "Pelle, the Conqueror" não oferece muitos momentos de humor - embora tenha um astral positivo. Aliás, as aproximações entre esses dois filmes devem ser vistas com cuidado - já que embora com personagens infantis, centrados numa mesma região do mundo, possuem características próprias. Assim como Billie August, que teve uma formação de cinema via televisão (mas que diz detestar), tem procurado temáticas diferentes em sua obra: em 1979, em "A Day in my Life", seu primeiro filme, abordava um casal numa sociedade próspera. Quatro anos depois (1983), em "Zappa", de uma novela de Bjarn Reuter, contava a história de três jovens de origens diferentes. Chegaria a "Twist and Shout", um filme sobre a geração pré-Beatles, que seria levado ao Festival de Moscou e encontraria sucesso não só em vários países europeus mas também nos Estados Unidos. LEGENDA FOTO - Uma obra-prima na tela ampla: "Pelle, o Conquistador", Oscar-90, melhor filme estrangeiro, com Max Von Sydow e Pelle Hevenegaard ainda hoje no Cine Bristol.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
10/01/1990

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