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Aramis

Quando o olhar corta sentimentos e pecados

"Se o olho não fosse ensolarado / Não poderia avistar o sol" (Goethe,1749-1832) xxx Se o soviético Dziga Vertov (1896-1954) ao criar a câmera-olho (Kino Glaz) quando, na década de 20, propôs mostrar a vida pela realidade da câmera, quase 70 anos depois, um judeu novaiorquino, Woody Allen, 55 anos, ao atingir o ponto máximo de sua obra (até agora) faz do olho-pensamento a câmera mergulhar na maior profundidade dos sentimentos, culpas e reflexões do ser humano. Se alguém ainda poderia ter dúvidas da genialidade maior de Allen como o cineasta contemporâneo americano que melhor procura entender a perplexidade do homem urbano, com este "Crimes e Pecados" (Cinema I, somente até quinta-feira, 16, 20 e 22h), costura, em definitivo, toda uma aproximação de teses humanistas-sociais iniciadas há 12 anos ("Interiores") e com seus dois outros vértices em "Setembro" (1987) e "A Outra" (1988). Ao longo de 100 minutos de "Crimes and Misdemeanors" há o olho como a palavra-sentimento (em seus vários significados) como uma espécie de rota do mar em que personagens se (debatem) em suas angústias. O oftalmologista Judah Rosenthal (Martin Landau) recorda as frases de seu pai sobre "Deus tudo está vendo"; o rabino Ben está perdendo a visão em questão de meses - mas é a ele que, desesperado, o médico busca uma visão para resolver seu problema - conselho que não aceita, preferindo a visão realisticamente cruel que seu irmão Jack Rosenthal (Jerry Orbach), barra pesada na vida, sugere a solução mais prática: a morte da amante Dolores (Anjelica Huston) que ameaça destruir o seu universo familiar e social. Cada um em sua visão de mundo, os conflitos espirituais, materiais e afetivos que explodem a cada seqüência numa narrativa de mestre, com o roteiro sempre preciso que Woody Allen sabe conduzir seus filmes. O próprio Allen é o intérprete de Cliff Stern, um cineasta marginal, cujo único momento de glória profissional foi ganhar uma garrafa de champanhe como menção honrosa num festival de documentários em Cincinatti, no qual levou um filme sobre leucemia. Mal casado - a esposa, Wendy (Joanna Gleason), incapaz do menor gesto de afetividade e com a qual não tem relações há um ano ("A última vez que estive dentro de uma mulher foi quando visitei a estátua da liberdade", diz Stern, numa das tiradas com o humor ácido que caracteriza sempre os personagens vividos por Allen) - o fazem um humilhado e ressentido com a glória do cunhado, o babaca - mais rico, atraente e com muitas mulheres - Lester (Alan Alda). Humilhação maior: dirigir um especial para televisão enaltecendo a "criatividade" de Lester, só para conseguir dinheiro e poder retomar o projeto que o fascina: um documentário sobre um filósofo judeu, sobrevivente de Auschwitz, professor Louis Levy (Martin Bergmann), exemplo de serenidade, equilíbrio e esperança. O olhar-mentira da falsa criatividade (Lester) em contraposição aos 600 mil pés de olhar-verdade já rodados sobre Louis Levy se rompem quando este se suicida. Ponto de ruptura de conflitos existenciais, indagações e mesmo cobranças da questão da fé, Deus e verdade - no ponto de vista (ou olhar) judaico. Paulo Francis, um dos mais bem informados jornalistas do mundo e numa das raras vezes em que enalteceu um filme, escrevendo ("Folha de São Paulo", 19/10/1989), deu a dica: Louis Levy é um personagem inspirado em Primo Levi, escritor, químico, que também esteve em Auschwiz, mas que se suicidou quando sua mãe morreu, em 1988. Só que, segundo Paulo Francis, Primo, ao contrário do ficcional Louis Levy, não pregava esperança nenhuma - e, em seu ceticismo, o jornalista conclui que ao colocar este personagem-base (e que só aparece em imagens de movíola dentro do filme), Allen pretendeu satirizar: 1) o clima moral de documentários educativos; e 2) qualquer pretensão de excepcionalidade judaica. xxx Como "Interiores", "Setembro" e "A Outra" - filmes em que retirando qualquer abertura de humor, Allen desceu às profundas raízes do ser humano, neste "Crimes e Pecados" Allen também não faz concessões. Claro que assim como a trilogia anterior tinha raízes bergmanianas (junto com Felline, o cineasta que mais admira) Allen buscou no clássico do russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), "Crimes e Castigo" (publicado em 1860) o prisma central dos conflitos de um médico rico, bem casado, 2 filhos, que de repente tem a sua estabilidade ameaçada pelo histerismo de uma amante. Morte é a solução para livrá-lo desta ameaça - mas como o estudante Raskolnikov do romance "Crime e Castigo", a consciência passa a cobrá-lo pelo crime. Neste aspecto, Allen foi admiravelmente feliz na contemporização e crítica de um tema tão amplo: a ameaça que uma amante desequilibrada pode trazer a um homem - capaz de inspirar até obras canalhas como "Atração Fatal" (1987, de Adrian Lynne) e a punição do original assassino de São Petersburgo, que se diluem no cinismo da sociedade americana. Ao final, Judah mostra-se feliz e tranqüilo, fazendo daquilo que foi por alguns meses a sua tragédia, um filme de ficção. E ainda discute o happy ending do cinema e os sentimentos de culpa - com toda a milenar tradição religiosa judaica. Assim como a curitibana Denise Araújo defendeu há 6 semanas, na Universidade do Arizona (EUA), sua tese sobre carnavalização do universo de Allen a partir de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" (Annie Hall, 77) - conforme aqui registramos há poucos dias - "Crimes e Pecados" comporta uma outra tese. Pois de seus 19 longa-metragens, alcança o ponto maior na discussão de questões tão complexas em termos de relações, sentimentos e reações humanas - mas ao mesmo tempo fazendo, mais do que nunca, esta esplêndida contemporaneidade urbana - na qual, sem sair de sua querida Nova York, filmando no Waldorf-Astoria, Park Avenue, Tavern ou Green, estúdios HBO, restaurante One Fifth - cenários tão familiares em seus filmes - a dimensão universal. Afinal, como bom leitor dos clássicos russos - especialmente Leon Tolstoi (1820-1910) - quem, aliás, o "o iluminou" no roteiro de outro filme precioso ("Hannah e suas irmãs", 1986), Woody é cada vez mais universalmente humano e profundo, falando de sua aldeia. Mesmo que esta aldeia seja a Big Apple. LEGENDA FOTO - Woody e Mia: mais uma vez com emoção... Juntos, pela 10ª vez, em "Crimes e Pecados", o filme (do ano e de Allen) em exibição até quinta-feira no Cinema I.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
05/06/1990

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