"Retratos", a obra prima do mestre Gnatalli, agora em CD
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 20 de outubro de 1991
Em 1964, quando o Brasil vivia momentos de crise político-militar, pós golpe de 1º de abril, um dos gênios de nossa música, o gaúcho Radamés Gnatalli (porto Alegre, 27/1/1906-RJ, 1989) oferecia, longe das quarteladas, um trabalho de mestre" a suíte "Retratos", na qual homenageando Pixinguinha (1898-1973), Anacleto de Medeiros, (1866-1907), Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Ernesto Nazareth (1863-1934), desenvolvia um dos mais belos trabalhos instrumentais já feitos em nosso país.
A obra foi dedicada a um de seus maiores amigos, Jacob do Bandolim (Jacob Pick Bittencourt, 1918-1969), que seria o solista da gravação, uma produção esmeradíssima da CBS, com uma das mais inspiradas na capa - um lambe-lambe em paisagem lembrando uma praça da Belle Époque e, na contracapa, um notável texto de Lúcio Rangel, nome maior do jornalismo musical brasileiro. O disco ficou como um momento único dentro da MPB e apesar de inúmeros pedidos a CBS nunca se interessou em reeditá-lo, o que viria a acontecer apenas há dois anos, graças ao incansável Leon Barg, que no volume 30 da Revivendo, incluiu a suíte "Retratos", acompanhada de outros registros (*).
Em agosto de 1979, quando Cleto de Assis, então Secretário de Comunicação do governo Ney Braga sabia prestigiar grandes eventos culturais, aconteceu em Curitiba a estréia de "Tributo a Jacob do Bandolim", espetáculo de cuja idealização, numa noite em Brasília, participamos ao lado do grande animador cultural, poeta, produtor e diretor Hermínio Belo de Carvalho. Praticamente lançando a Camerata Carioca - o mais importante grupo de choro que surgiu nos últimos anos no Brasil - e tendo a próprio Radamés como solista, a transcrição única, que na noite de 11 de agosto de 1979, no auditório Salvador de Ferrante, arrancaria lágrimas de emoção de muitos espectadores. Levando posteriormente a São Paulo e Rio, o concerto ganharia registro num perfeito elepê produzido por Sérgio Cabral na WEA, quando aquela multinacional ainda editava música brasileira - e não se limitava a impor o pior pop internacional, como acontece nos dias de hoje. O êxito de "Tributo a Jacob do Bandolim", levaria inclusive espetáculo, igualmente estreando em Curitiba, "De Vivaldi a Pixinguinha", com Radamés ao cravo e a Camerata Carioca - e que ganhou forma de disco, após uma longa peregrinação da fita registrada nos estúdios SIR.
Agora, 21 anos após "Retratos" ter sua última gravação, eis que o incansável Mário Aratanha produz aquele que será, sem dúvida, o disco do ano em termos instrumentais: uma gravação em CD, com a suíte de Gnatalli, com o som do acordeonista Chiquinho (Roemu Seibel, Santa Cruz do Sul, RS, 7/11/1928), um dos maiores amigos de Radamés e que a partir de 1954 integrou o seu sexteto. Na suíte Chiquinho contracena com outro gênio instrumental, o violonista Rafael Rabello, e além de Retratos, temos o "Concerto para Acordeon, Tumbadoras e Orquestra" com a Orquestra de Cordas Brasileiras (duas vezes ganhadora do Prêmio Sharp), dirigida por Henrique Cazes. "Amargura", outra jóia de Gnatalli, samba-canção de sucesso dos anos 50, cantado por Lúcio Alves com letra de Alberto Ribeiro (1902-1971) ganha aqui, com a sutileza de Chiquinho ao acordeon, sua definitiva condição de clássico da nossa música.
Em sua generosidade extraordinária, Radamés dizia que "sempre fiz música para os meus amigos" - e dedicou a grandes nomes, que com ele conviveram, muitas de suas preciosidades. Para escrever estas peças, contava que imaginava o teatro, a orquestra e seu amigo entrando para tocar, o jeito de cada um, e a partir disto surgia mais uma "música com a cara" do solista.
A suíte "retratos" foi imaginada para ter Jacob do Bandolim - então em pleno vigor - como solista, mas em homenagem a quatro músicos, todos já falecidos na época, que Radamés muito admirava. Assim como na pintura Anita Malfati retratou Tarsila e Portinari retratou Cícero Dias, Radamés fez o "retrato musical" de Pixinguinha - de quem foi amigo e era o único que estava vivo na época da homenagem - Nazareth (que ouviu no antigo cine Odeon), Anacleto e Chiquinha. O tempo todo a música "lembra" o choro "Carinhoso", a valsa "Expansiva", o schottisch "Três Estrelinhas" e o corta-jaca "Gaúcho". Às vezes é um trechinho de acompanhamentos, ou alguns compassos do meio do tema... são idéias típicas de cada um dos quatro que Radamés usou para compor "à maneira deles".
Nesta versão de Rafael e Chiquinho, com Dininho no violão-baixo, está expresso o melhor "estilo redamesiano". Rafael conviveu com Radamés na Camerata Carioca e já lhe dedicou um elepê só com suas peças para violão - além de ter sido um dos mais dedicados amigos do maestro em seus últimos anos de vida. Chiquinho conheceu Radamés em 1951, quando o instrumentista gravava seu primeiro 78 rpm e ele era o maestro. "Ele detestava acordeon, mas depois deste primeiro encontro ele chegou para mim e disse que me queria em todas as suas gravações. Ficamos juntos quase 40 anos" diz Chiquinho.
O Concerto para Acordeon, Tumbadores e Orquestras, com Beto Cazes nas tumbadoras é, talvez, o melhor exemplo de dedicação ao inseparável companheiro de chimarrão Chiquinho à terra de ambos. É a mais rasgada declaração de amor ao Rio Grande do Sul e o terceiro são variações em ritmo de polca sobre Prenda Minha, mais popular canção folclórica gaúcha. Segundo Henrique Cazes, outro indispensável amigo dos últimos tempos, "ao misturar a tradição gaúcha com a polca e o tango", Radamés sintetiza o ambiente musical de sua infância e adolescência. O adágio foi escrito nitidamente com a intenção de mostrar o magistral fraseado do solista - é um "Concerto para o Chiquinho do Acordeon".
Notas
(*) Na reedição de "Retratos", com o teipe original da CBS, Leon Barg completou o disco com sete choros de Jacob do Bandolim, com o grupo Época de Ouro: "Murmurando", "Doce de Coco", "Chorando", "Verinha", "Juriti", "Simplicidade" e "Saudades de Guará". Originalmente, no lp da CBS (número 60099) lançado em março/64, (no lado B estavam "Uma Rosa para o Pixinguinha", "Moto Contínuo", "Vaidosa nº1", "Canhoto", "Noturno", "Vaidosa nº2), "Maneirando" e "Porque". Na reedição feita por Leon Barg, no volume 30 da Revivendo, o texto de contracapa foi do professor, colecionador e pesquisador Alceu Schwab, 66 anos, o maior conhecedor da obra de Gnatalli no Paraná.
(**) Cícero Dias, 83 anos, esteve em Curitiba no dia 15 de outubro a convite do marchand-de-tablaux Waldir Assis Simões, para a inauguração individual em sua galeria. Cícero Dias, considerado um dos grandes pintores brasileiros, reside em Paris desde 1945 e foi compadre de Picasso, padrinho de sua única filha, Sílvia.
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