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Aramis

Se todas as crianças do mundo... (uma fábula para os adultos)

"A Voz do Silêncio" (Cinema I, 4 sessões) é (mais um) exemplo daqueles filmes que desperdiçam o marketing que hoje o cinema (como qualquer produto) necessita para atrair um público alvo. Lançado sem qualquer cuidado, está tendo bilheterias tão fracas que até sessões já foram canceladas. Trata-se, entretanto, de um dos mais interessantes filmes do ano e que teria, com um bom trabalho de marketing, condições de fazer boa carreira. Duas datas, próximas, têm a ver com a temática deste segundo longa-metragem do inglês Mike Newell ("Monalisa") em seu lançamento. Ao abordar o protesto que um garoto de 10 anos, Chuck Murdock (Joshua Zuehlke) decide fazer contra as armas nucleares - e no que tem a voluntária adesão de um astro do basquete, Amazing Grace Smith (Alex English) aproxima o tema da presença política que o esporte pode ter numa sociedade democrática. Filho de um oficial da USAF, o major Russel Murdock (William L. Petersen), Chuck, 9 anos, inteligente, excelente atleta - líder de seu time de beisebol, choca-se ao visitar uma base de lançamento de mísseis com armas nucleares capazes de destruírem o mundo em questão de minutos. Decide, então, fazer o seu solitário protesto: recusa-se a continuar a jogar beisebol e da pequena notícia publicada no jornal de sua cidade, o fato amplia-se. Um campeão de basquete, Amazing Grace Smith (interpretado por Alex English, um negro de quase 2 metros de altura, jogador do Boston Celtics) emociona-se com o protesto do garoto Chuck, visita-o e decide abandonar a carreira (que lhe rendia um milhão de dólares em contratos publicitários) e, comprando um velho celeiro na distante cidadezinha de Montana, na qual vivem os Murdock, também faz o seu protesto antinuclear. O crescimento natural do movimento - inclusive sua internacionalização, passa a preocupar o presidente dos EUA (Gregory Peck, 72 anos - e que desde 1981 não filmava), que procura o garoto Chuck e, em decorrência de seu protesto, consegue apressar as negociações com o premier soviético para a assinatura do tratado de eliminação das armas nucleares. Como se vê, a junção de dois itens de grande empatia - o esporte como protesto e a pureza nas intenções de uma criança - podem, em si, fazer de "The Amazing Grace & Chuck" (ou "The Voice of Silence") um filme capaz de chegar aquela faixa de público que ainda gosta de um cinema de magia e encantamento. As recém encerradas Olimpíadas - em seu aspecto de confraternização de todos os homens do mundo, num momento de paz - e o Dia da Criança - seriam ganchos para que a Columbia promovesse de forma mais inteligente "A Voz do Silêncio", que, entretanto, é lançado da forma mais obscura - com um release em que não há, inclusive, a menor indicação do tema abordado. Assumidamente com uma fábula pacifista, o inglês Mike Newell, a partir do roteiro do produtor-escritor David Field, decidiu homenagear Frank Capra (Palermo, Itália, 1897) que chegando aos EUA em 1903 acabou se tornando o cineasta que mais glorificou as virtudes do homem comum norte-americano. Chamado de "o cineasta do New Deal", Capra foi quem, entre os anos 30/50 - especialmente nos difíceis anos de depressão econômica americana (a partir do "crack" da Bolsa de Nova Iorque, em 1929) criou comédias sociais, otimistas e confiantes na democracia americana. A tese central de "O Galante Mr. Deeds" (Oscar de direção, 1936), seria a constante de sua filmografia (esparsamente reprisada nas sessões Coruja da Globo): um homem simples pode extrair de dentro de si o punhado de coragem, inteligência e amor para vencer seu meio ambiente hostil. Esta pureza de sentimentos - e crença nos valores da democracia - fez com que filmes como "Do Mundo Nada se Leva" (1938), "Adorável Vagabundo" (1941), "A Felicidade não se Compra" (1946) e mesmo "Dama por um Dia" (seu último filme, de 1961, antes de se aposentar), se transformasse em exemplos de um cinema limpo, de tamanho família, e sempre profundamente otimista. O flash-back em relação a Frank Capra é necessário para se entender um filme como "A Voz do Silêncio". Numa época em que a violência, agressividade e pessimismo caracterizam o cinema - mesmo o artisticamente mais criativo - um roteiro como o de David Field pode ser, facilmente, aniquilado com a acusação de ingênuo, infantil e piegas. Realmente, de uma perspectiva lógica, uma cruzada silenciosa que um menino e um negro iniciam, sem pretensões, numa pequena comunidade do Estado de Montana (cujas belas paisagens emolduraram tantos e inesquecíveis westerns) pode parecer até ridículo. Mas a temática do perigo nuclear - com uma filmografia já expressiva ("A Síndrome da China", "O Dia Seguinte", para citar apenas dois exemplos recentes), tem em "The Voice of Silence" uma visão pelo prisma infantil. Em "Jogos de Guerra" (War Games, 1984, de John Badham), um garoto ao brincar com seu computador pode detonar uma guerra nuclear. Chuck Murdock, longe da parafernália eletrônica - no ecológico espaço de uma região ainda não atingida pela poluição (mas na qual já chegaram os "silos" nucleares) apenas com uma atitude (a recusa de jogar) e o silêncio (após a trágica morte de seu maior amigo), consegue fazer com que o presidente americano e o premier soviético assinem um acordo total de paz. Sonho distante, mas não impossível (e o primeiro acordo Reagan-Gorbachev há alguns meses foi um passo nesse sentido), a desnuclearização das superpotências tem em "A Voz do Silêncio" uma bela fábula para emoção de todos os homens (e crianças) do mundo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
11/10/1988

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