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Aramis

Sem frescura, Ney pesca as belas pérolas da MPB

A escalada grandiloquente era preocupante. A cada novo-show-disco o ex-Secos & Molhados procurava imagens mais estapafúrdias: entre chifres e penas ("Água do Céu-Pássaro", Continental, 1975), metais e couros ("Pecado", 1977), faca na mão, chama no olhar ("Sangue Latino", 1982), rosto recoberto de purpurina ("Destino de Aventureiro", 1984) e até rosto esculpido em laser ("Bugre", Barcaly/Polygram, 1986). Aonde iria parar Ney de Souza Pereira (Bela Vista, MT, 1941) com suas elucubrações visuais-coreográficas em espetáculos cada vez mais caros e pretensiosos? Se justificava tanta parafernália visual para um cantor sabidamente com uma voz perfeita, segura, bela e, sobretudo originalíssima? Felizmente, o próprio Ney entendeu que precisava dar uma reviravolta em sua carreira. Se a fase dos Secos e Molhados, ao lado de Gerson Conrad (São Paulo, 1952) e João Ricardo (Carneiro Teixeira Pinto, Portugal, 1949), entre 1973/74, trazia aquela loucura de caras pintadas e gestos andrógenos, as coisas modificaram-se nos últimos treze anos seguintes. Os próprios David Bowie e Alice Cooper, êmulos internacionais na linha andrógena, preferiram posturas mais discretas, substituindo o disfarce visual por solidez artística. O resultado é que temos agora um novo Ney Matogrosso. Um cantor esplêndido, na melhor fase de sua carreira, com um espetáculo-disco ("Pescador de Pérolas", CBS, show já apresentado no Canecão, RJ e, em breve, no Guaíra) suave, emocionante e, sobretudo, brasileiríssimo. Em si, pela própria mudança de estilo e forma (Ney em trajes normais, sem maquiagem apelativa) este "Pescador de Pérolas" já seria um dos discos do ano - ainda mais que marca a estréia de Ney no pequeno elenco da CBS, destinado a exportação. Entretanto, numa jogada tão válida musicalmente como audaciosa em termos de carreira do virtuoso Arthur Moreira Lima, temos este que é um dos maiores nomes do piano erudito no Brasil chegando ao ponto de se transformar em músico-acompanhante de Ney Matogrosso. Quem conhece Arthur (e nós modestamente, o conhecemos bem) sabe que este carioca de 47 anos, considerado um dos melhores intérpretes de Chopin do mundo, nunca aceitou a camisa-de-força do bom comportamento da música erudita. Embora consagrado como recitalista clássico, se voltou ao popular, valorizou Ernesto Nazareth em dois álbuns duplos para seu amigo Marcos Pereira, entusiasmou-se com o baiano Elomar Figueira de Mello e saiu, junto com Paulo Moura e Heraldo do Monte, com a "Cantoria" pelo Brasil afora. Levou o melhor chorinho ao Lincoln Center, em Nova Iorque, fazendo inclusive o curitibano Norton Morozowicz tocar os clássicos de Callado. Assumindo a condição de superstar na televisão ("Um Toque de Classe") empresário de seus próprios discos e shows (através da L'Art, Arthur Moreira Lima mudou muito em relação aquela personalidade simples e despreocupada de alguns anos passados - para surpresa (e até decepção) de amigos queridos, como Aristides Athayde, ex-presidente da Pró-Música e na casa de quem sempre se hospedava quando, em seus tempos de apenas pianista erudito, vinha a Curitiba. Pois é este Arthur Moreira Lima versão 87, que assume - até que ponto é uma prova de humildade? - a condição de side man de Ney Matogrosso - como instrumentista-acompanhante. Ney Matogrosso só ganhou com isto. Afinal, não poderia existir um melhor pianista para emoldurar sua voz na versão feita para o disco da ária da ópera "I Pescatori Di Perle" ("Mi Par D'Udir Ancora") que dá título ao show-disco, e no qual só há a voz de Ney e os teclados de Arthur - duo que se repete em "Quem Sabe", a mais conhecida das modinhas de Antonio Carlos Gomes, homenagem sentida ao sesquicentenário de nascimento do compositor campineiro (1836-1986). Em outras faixas, o piano de Arthur se integra ao sax de Paulo Moura, a percussão de Chacal e ao violão de Rafael Rabello - na formação instrumentalmente perfeita deste momento musical. Aliás, Rafael, hoje o grande violonista brasileiro, já abre o disco com "O Mundo é um Moinho", uma das (muitas) obras-primas de Cartola (Angenor de Oliveira, 1908-1980), a qual Ney dá uma interpretação de notas cortadas bruscamente para acentuar a dramaticidade do poema. Depois das primeiras palmas, Rafael, mais uma vez se apossa da pura felicidade que gozam os mestres para trazer a voz do cantor os primeiros acordes de "Segredo" (Herivelto Martins) e ambos encontram na música nuances jamais exploradas, fugindo ao lugar comum do dramalhão que ela sugere aos menos cuidadosos - como tão bem acentuou o jornalista Mauro Dias. Uma jóia do cancioneiro popular, "Tristeza do Jeca" (de Angelino de Oliveira) é a faixa seguinte e aqui, concordamos integralmente com o que observou Dias: a inclusão desta música tão ingênua quanto brasileira, é um ato de coragem para um urbano: quantos intérpretes poderiam abraçar com tamanha dignidade os versos purificadores dessa viola em que cada quadra representa uma saudade? O quarteto instrumental inicia uma folia para Ney desfilar fortíssimos e pianíssimos em "Dora", do grande Caymmi, com suas sinuosidades e sutilezas magistrais. À capela, mais um grande momento: "A Lua Girou", tema folclórico em adaptação de Milton Nascimento e Ney Matogrosso, uma jóia de letra: A lua girou/Traçou no céu um compasso Eu também quero fazer/Um travesseiro dos teus braços. Um aspecto técnico que Mauro Dias esclarece: não existem falsetas no canto de Ney. Ney é contralto, por definição e registro mais grave da voz feminina. Portanto, quando canta, sua voz soa, naturalmente naquela região aguda e peculiaríssima que lhe dá distinção e personalidade. Mas sua voz não é feminina: ele é um contralto homem - o qualificativo é comum de dois gêneros - o que o torna mais distinto dos demais cantores. Estas nuances de vozes fazem Ney ser ouvido com múltiplas leituras de vozes. Por exemplo, o segundo lado do disco é também aberto pelo violão de Rafael, agora com sotaque gitano, flamengo, para releitura de "Dos Cruces" (Carmelo Larrea), que há tempos Milton Nascimento já havia gravado. E dentro de um segmento latino, temos "Alma Llanera" (Pedro Elias Gutierrez) e o clássico (e eternamente romântico) bolero "Besame Mucho" (Consuelo Velasquez). Dentro de um repertório escolhido a dedo, vem a seguir "Da Cor do Pecado" (Bororó), no qual Ney dialoga com o sax alto de Paulo Moura. Por fim, de Ary Barroso, dois momentos de ufanismo carioca: "Rio de Janeiro" e "Aquarela do Brasil". Gravado ao vivo (das 23 músicas do espetáculo, no disco estão treze), um momento esfusiante da carreira de Ney Matogrosso. Um disco brasileiro, emocionante e lindo - como a sua voz e os instrumentos que com tanta competência Arthur, Rafael, Moura e Chacal executam.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
7
29/03/1987

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