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Aramis

Sexo & letras quando Paris era uma festa

É sempre bom lembrar aos que esqueceram - e contar a maioria que desconhece - que foi um jornalista curitibano que tornou possível, no início dos anos 60, que uma geração de brasileiros se extasiasse (e se masturbasse) com a leitura de um dos clássicos da literatura maldita contemporânea: "Trópico de Câncer". Roberto Mugliatti, hoje já passando dos 50 anos, mas na época com pouco mais de 20, retornando de cinco anos de vivência entre Paris e Londres e iniciando sua carreira na Bloch (na qual acabaria editor-chefe da "Manchete", função que ocupa há mais de 10 anos) foi quem traduziu os livros de Henry Miller, um autor que só em 1961 havia sido editado, legalmente, nos Estados Unidos ("Trópico de Câncer", 1932, saiu com atraso de 29 anos e "Trópico de Capricórnio", 1939, foi lançado finalmente nos EUA em 1962). "Maldito", "underground", "um escritor sujo" pela apologia que sempre fez do sexo em sua obra, Henry Valentine Miller (New York, 26/12/1891 - 08/06/1980) foi um dos muitos americanos que emigrou nos anos 20 e viveu em Paris, que era uma festa, como definiu seu amigo e contemporâneo Ernest Hemingway (1899-1961) e esbarrou na chamada "lost generation" da frase cunhada por outra escritora americana auto-exilada na capital francesa, Gertrud Stein (1874-1946). Sem dinheiro, mas com o vigor, entusiasmo e tesão da juventude, Henry Miller foi uma espécie de Charles Bukowski - naquela Paris em que conviviam personalidades da força de Hemingway, Scott Fitzgerald, Stein e Ezra Pound (1885-1972), este, aliás, um dos primeiros defensores de seu "Trópico de Câncer" quando foi publicado em Paris em 1934 e imediatamente banido das livrarias. Dono de um estilo seco e direto, profundamente (e chocantemente) realista, imagine-se o estrago no comportamento tradicional que a literatura de Miller provocou há meio século. Como toda obra de vigor, Miller acabaria reconhecido, editado e cultuado internacionalmente, e teve uma velhice tranqüila no paradisíaco vale de Big Sur, ao qual dedicou, inclusive, uma de suas obras ("Big Sur and the Orange of Hieronymus Bosch", publicada em 1956). Escandaloso e maldito nas décadas de 30 a 50, hoje a obra de Miller pode ser considerada até ingênua - mas sem perder o vigor - frente as mudanças de comportamento e assim não surpreende que um filme biografando uma das fases sexualmente mais intensas de sua vida - "Henry e June - Delírios Eróticos" (Cine Condor, 5 sessões), após provocar polêmicas nos EUA (onde foi considerado pornográfico) chegue ao Brasil interditado apenas aos menores de 14 anos. Como se não bastasse ser uma nova demonstração de competência e inteligência de um dos mais intelectualizados cineastas americanos da nova geração, Philip Kaufman - após ter desenvolvido todo o erotismo checo de Milos Kundera em "A Insustentável Leveza do Ser", "Henry e June" é um filme admirável em termos de discussões de literaturas, vida, sexo e comportamento humano. Um roteiro preciso que desenvolveu com sua esposa, Rose - e que tem uma sensibilidade toda especial no enfoque da personagem Anais Nin (que Kaufman conheceu em 1962, quando ainda era universitário - e que influiu, inclusive, em sua decisão de fazer cinema), faz com que este filme tenha aquela característica de obra-panorama. Mais do que a recriação de uma época marcante da inteligência - a Paris dos anos 30, maravilhosamente fotografada por Philippe Rousselot (indicado ao Oscar, perdeu para Dean Semler de "Dança com Lobos") o filme de Kaufman, em seus 123 minutos, passa todo um clima de poética sensualidade e sobretudo extraordinário amor, ao declarar, sem meias tintas, o "menage a trois" entre o escritor, sua esposa (uma das oito que teve) - June Edith Smith - e a amante em comum, a mignon Anais Nin. Casada com um executivo bancário - que posteriormente se tornaria cineasta de vanguarda com o nome de Ian Hugo (seu nome era Hugh Guiller), Anais passa dos braços do marido para os de June e desta para os de Henry Miller - entre outras experiências sexuais. June, entre infidelidades profissionais (com o mecenas que patrocinou a viagem de Miller a França; seu editor e até o agente de viagens para conseguir uma primeira classe no navio de volta aos EUA), faz Anais descobrir os prazeres do lesbianismo, mas, mesmo com toda sua "abertura" de cabeça, reage, conservadoramente, quando se vê como a personagem "Mona" de "O Trópico de Câncer" e a "Sabina" de "A Casa do Incesto". Acha que seus amantes-escritores não fizeram justiça à sua personalidade e não se reconhecendo nos personagens, roda a baiana! Fred Ward é um Henry Miller precocemente envelhecido. Uma Thurman expele sexo por todos os poros como June, mas a portuguesinha Maria de Medeiros que Kaufman descobriu para fazer Anais Nin é a grande presença. Linda "miúda" - como diriam os lusitanos - dois olhinhos, o sexo e uma cabeça privilegiada, conduzindo uma "love story" com sabor de esperma, suor e paixão, como poucas vezes de tem visto no cinema.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
11/04/1991

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