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Tetê, a que tem pássaros na garganta, grava na Amazônia

Tetê Espíndola, matogrossense de Campo Grande, de uma família de artistas talentosos, é a cantora com pássaros na garganta, como foi definida há anos, antes mesmo que o público descobrisse seu imenso talento ela fosse apenas uma cantora cult (*). Para provar a ornitologia vocal, Tetê assumiu uma obra total: um álbum ("Ouvir", produção independente, editada com apoio da Universidade Federal de Mato Grosso/Estadual de Campinas, Fundação Vitae, Instituto de Pesquisas Espaciais - INPE e IBF da Amazônia) que, sem dúvida, está entre os mais originais e bonitos trabalhos já realizados no Brasil - com tranqüilas condições de se transformar num must internacional. Torna-se difícil até classificar este álbum (que, esperamos, tenha também edição em CD) apenas como música. Afinal, Tetê acrescentou a um clima musical aquela proposta que há 30 anos um engenheiro alemão, John Dalgas Frisch, realizou no Brasil e que resultou numa série de álbuns, originalmente lançados pela hoje extinta Copacabana (**), mas que ainda se mantém em catálogos internacionais - como exemplos de cantos de pássaros, inclusive de muitas espécies em extinção - como o Uirapuru. Coerente com sua vocação ecológica, marca registrada em toda sua obra - desde os tempos do grupo Lírio Selvagem, Tetê Espíndola desenvolveu a Expedição Macauã, para um (re)encontro com o lendário Uirapuru. Realizada entre 24 a 29 de outubro de 1990, com a participação de seu irmão, o artista plástico Humberto Espíndola (***), Maria Catunda (pesquisadora e colaboradora), Dante Renato Buzzetti (ornitólogo), assistente do professor francês Jacques Vielliaerd, responsável pelo acervo etno-tropical da UNICAMP. Como diz Humberto, "com ele tivemos a satisfação de transcorrer na viagem a complementação de três mil dias de expedição científica, só no Brasil. Foi exemplo de mestre na compreensão da proposta e na tranqüilidade com que registrou o canto de 167 espécies, nos intensos cinco dias de nossa curta viagem". As gravações das vozes dos pássaros feitas na Amazônia - numa viagem que partindo em barco de Santa Madureira, no Acre, subiu o rio Yaco prosseguindo pelo Macauã até chegar ao coração da matéria como se poderia classificar esta expedição ornito-ecológica-musical. Sobre esta base natural, Tetê trabalhou demoradamente, resultando 15 painéis (mais do que canções), nas quais fez (em solo) a criação de seis, entregando quatro a responsabilidade do parceiro e amigo Arnaldo Black, com o qual desenvolveu "Garrincha na Chuva", em que mostra o som do Thryothorus Coraya, o pássaro que tem o nome popular lembrando o inesquecível crack da seleção de 58/62 - com seu canto que se ouve quando chove. Cada momento deste disco - no qual houve discretíssima participação de instrumentistas profundamente identificados ao projeto, como o tecladista Cláudio Leal, violonista Elias de Almeida, cellista Paulo Tacerri, o Duofel, a flauta de Toninho Carasqueira e a própria Tetê na craviola - é mágico. Trata-se de um registro que se ouve inúmeras vezes, descobrindo-se uma dimensão e beleza que para os poluídos ouvidos de nós, urbanóides (como diria o baiano Elomar Figueira de Mello) não estão acostumados com tanta pureza. No lado A, chamado "Céu Aberto", a abertura - "Colagem da Mata I", é com os sons do japu-verde, periquito, anhúma, uirapuru-da-terra e a garça branca, que juntam-se ao canto de Tetê. Em "Migração", Black, desenvolveu quase uma vinheta instrumental, como tema de esperança "para as aves que viajam grandes extensões no planeta, na busca da perpetuação da espécie". O terceiro tema é o "Quero-quero", ave muito conhecida no Mato Grosso (e também no Sul), cuja estrutura rítmica de seu canto foi tema para a canção (de Black) com a participação de um instrumento de percussão. "Jaó & Cia", é o pássaro cujo canto noturno, juntando a timbres de pássaros melódicos e percussivos, foi usado por Tetê na criação de um tema jazzístico em forma de colagem, no qual convocou para amparar vocalmente sua irmã Alzira. "Tinguaçu", pertencente a família de aves do Hemisfério Ocidental que está entre os grupos mais diversificados do mundo, teve seu canto melódico inspirando uma canção de Tetê, em forma de lamento que muito se aproxima do blues, nos arranjos de Cláudio Leal e Tetê. "Garrincha na Chuva", com a percussão de Guello - e os pássaros Araraúna, subideira e garrincha da chuva, encerra o "Céu Aberto". Em "Mata Fechada", a abertura (Colagem da Mata II"), os parceiros vocais de Tetê são o jaçanã, pássaro boi e o japim, num canto dedicado ao uirapuru, com toda sua mitologia. Já o arranjo (e teclados) de Cláudio Leal idealizou "Bico de Brasa", para um solo de Tetê, numa canção composta durante a expedição, "inspirada no amanhecer". De plumagem cinzenta, com ligeira tonalidade parda, a seriema, esguia, porte marcial, faz parte de uma espécies das mais conhecidas. Devorando cobras, em Mato Grosso possui um valor sentimental que inspira o cancioneiro popular e a melancolia de seu canto foi tema para a canção de Tetê. O sabiá, de uma família de 300 espécies, tem sido dos mais exaltados em seu canto. A mania de engaiolar sabiás melodiosos é um gesto perpetuado em caixinhas de música, idéia que inspirou "Sabiá Verdadeiro", que Black foi buscar no "Uru", pequeno galináceo florestal de canto vigoroso que costuma andar em grupos casais, no solo e matas e capoeiras, o inspirador para uma canção no qual seu canto é o instrumento de percussão. Finalmente, "Festa da Curicácia", de Tetê - com a participação (na "Algazarra") de Itamar Assunção procura transmitir o espírito deste pássaro da espécie theristicus caudatus que no Pantanal é conhecido como "despertador" e cujo canto avisa a chegada de visitantes. A canção foi inspirada na algazarra dos ninhais em festa. Um projeto como "Ouvir" merece atenção especial. Trata-se de um documento sonoro que mostra as imensas possibilidades da voz humana, de instrumentos mesmo eletrônicos teclados etc., se integrarem - sem corromper - toda a harmonia da vida natural. Lamentável, apenas que "Ouvir" jamais vá se fazer ouvir em rádios, televisão e, mesmo, dificilmente chegando as prateleiras de ofertas das lojas cujos compradores não estejam com ouvidos limpos, abertos para entender um trabalho cristal como este maravilhoso álbum. Notas (*) O poeta Augusto de Campos foi quem definiu Tetê como a cantora com "Pássaros na Garganta". Tetê começou cantando seus irmãos, Marcelo, Geraldo e Alzira, gravando o elepê "Tetê e o lírio selvagem" (Philips/1978). Apesar de gravar elepês solos na Polygram ("Piraretã", 1980) e Som da Gente ("Pássaros na Garganta", 1982), só a partir de "Londrina" (Arrigo Barnabé) levado ao MPB-Shel e, posteriormente ter vencido o festival da Globo com "Escrito nas Estrelas" (Arnaldo Black/Carlos Rennó), foi que Tetê passou a ser reconhecida pelo público. (**) Gravadora eminentemente nacional, a Copacabana-Som Indústria e Comércio, praticamente fechou. Seu presidente, Adiel Macedo, vendeu a maior parte do precioso acervo que se formou entre os anos 50/60 para a CBS, hoje Sony. (***) Humberto Espíndola estudou jornalismo na Universidade Católica. Artista plástico que desenvolveu a "Bovinocultura", transformou-se em nome nacional e chegou a ser Secretário da Cultura de Mato Grosso do Sul. Reside em Campo Grande, desenvolvimento um trabalho hoje reconhecido internacionalmente. LEGENDA FOTO - Tetê Espíndola: parceria com os pássaros.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
4
11/08/1991

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