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Aramis

Um doutorado em Londres com a "Revista do Rádio"

Para quem menospreza revistas populares como "Amiga", "Contigo", "Sétimo Céu" e tantas outras publicações consideradas, preconceituosamente, de "público brega e para empregadas domésticas", preste atenção nesta informação: uma professora universitária fez seu curso de Doutoramento em Antropologia Social na University College London, desde janeiro de 1988, no qual grande parte do material pesquisado - vejam só - são justamente coleções de publicações como "Cinderela", "Querida", "Você", "Contos de Amor", e, mais especificamente, a "Revista do Rádio" e "O Cruzeiro" - todas dos anos 50. Alice Ignez de Oliveira e Silva, 49 anos, catarinense de Lages, professora da Universidade de Viçosa, Minas Gerais, aproveita as férias que está passando em Curitiba, onde residem seus pais - Evandro e Hilda de Oliveira e Silva (ele engenheiro aposentado) para aprofundar suas pesquisas na coleção "O Cruzeiro", existente na Biblioteca Pública, e na "Revista do Rádio", do acervo do Centro de Estudos e Pesquisas de Artes - instituição em formação. A tese de doutorado, que sob orientação do professor Nannecke Redclift, só será defendida em fevereiro de 1992, tem o título "O Universo Doméstico e o Imaginário Social Feminino da Mulher na Década de 50". xxx Formada em jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora, turma de 1964, professora há 20 anos na Universidade de Viçosa, Alice Ignez há anos vem se preocupando em entender o papel da mulher na sociedade brasileira nos anos 50 - "a época em que era adolescente, com os valores da família tradicional", e que já motivou sua tese de mestrado - "Rendas, Babados, Bilros e Crochês: a Construção Social da Mulher de Prendas Domésticas", 350 páginas, defendidas na Universidade de Campinas há quatro anos passados. xxx Numa evolução natural em sua carreira universitária, a professora Ignez encontra-se há dois anos em Londres, trabalhando em sua tese de doutoramento que, pelo ineditismo do enfoque que fará, transpõe ao simples interesse regional e cronológico. No material de referência, afora revistas populares que, nos anos 50 - quando a televisão praticamente inexistia fora do Eixo Rio-São Paulo (e nestas mesmas cidades muito timidamente), e as novelas da Rádio Nacional (e outras emissoras) é que conduziam o imaginário feminino - tinha grande circulação, Ignez volta-se também às leituras mais ingênuas da época. Entre elas as coleções "Menina e Moça", "Biblioteca das Moças" e, especialmente, a "Biblioteca Rosa". Dos autores de centenas de romances-folhetins que povoavam a imaginação das gentis e castas donzelas no Interior brasileiro, destacavam-se os romances "Madame Delly" - pseudônimo que na verdade escondia os irmãos Fréderic Petijean de La Rosiére (Vannes, 1876-Versailles, 1949) e Jeanne (Avignon, 1875-Versailles, 1947). Autores de dezenas de romances publicados a partir de 1913 - e que tiveram traduções em vários países - os Rosiére, ao morrerem, deixaram os direitos autorais para uma "Fundação Delly", destinada a amparar escritores doentes e idosos. Ignez explica o que a atraiu neste tipo de literatura ao ponto de desenvolver uma tese em relação a mulher brasileira de quatro décadas passadas. - "Não só me interessam as heroínas - paradigma do papel feminino - ou a "mensagem" das histórias, como também a descrição que é feita das casas, dos trajes. É curioso observar que tanto nas revistas como nos romances de Madame Delly, existe uma oposição muito presente entre campo e cidade - ou cidade pequena e metrópole. A primeira, lugar de virtudes, da vida "real", dos valores familiares e religiosos; a segunda, o lugar do "brilho fugaz", do sucesso ilusório, da perdição, dos vícios. Do mesmo jeito há uma valorização dos móveis tradicionais em oposição ao estilo moderno. As moças fúteis, que não são "boas para casar com meu filho", "gostam dos ambientes modernos, se preocupam com moda e andam maquiadas". Alice Ignez está buscando também manuais de formação religiosa, de educação sexual, de puericultura, livros de receitas. As fontes são ecléticas para seu trabalho que ajudará a entender melhor a formação da mulher do passado. Outra importante observação da professora Ignez: a década de 50 é o período de modernização, do progresso, "dos cinqüenta anos em cinco" do governo Juscelino Kubistchek. Graças a ênfase dada à industrialização, os eletrodomésticos se tornam disponíveis para um número maior de pessoas. - "Assim, importa saber como esses slogans, essas idéias de modernização e progresso se traduziam no cotidiano das famílias, como os eletrodomésticos, os produtos enlatados, a matéria plástica nos objetos domésticos se incorporam também a esse cotidiano. Enfim, como esses produtos são "vendidos" pela propaganda da época". Lendo detalhadamente a "Revista do Rádio", que Anselmo Domingues editava semanalmente entre 1948 e 1957 - é uma fonte excelente para entender a vida artística da época - Ignez chama atenção para uma de suas seções: "A Casa dos Artistas". - "Raramente são frutos do projeto de um arquiteto e constrastavam vivamente com os ambientes mostrados numa outra revista surgida na mesma época que é a "Casa & Jardim" - até hoje em circulação. Os artistas populares - Emilinha, Marlene, Francisco Alves, Angela Maria, Orlando Silva, e tantos outros - não só mostram os ambientes das salas e quartos, mas fazem questão de destacar "essa é a minha televisão Zenith de 21", ou "a minha geladeira de 10 pés Westinhouse" - símbolos de status social da época. As "casas dos artistas" eram, em grande maioria, localizadas em subúrbios do Rio de Janeiro ou em edifícios modestos - "mas dá para perceber regularidade nos estilos dos móveis, nos enfeites escolhidos. Esta seção foi publicada por anos a fio, "e penso que elas permitem uma amostragem do que seria a casa de uma mulher da classe média, aspirando a ascensão social - na identificação com os artistas que curtia pelos programas de rádio, nos discos 78 rpm ou nos filmes nacionais da Atlântida e Cinédia, que traziam ídolos da música brasileira". LEGENDA FOTO - Professora Alice Ignez: na "Revista do Rádio" e romances água-com-açúcar de Madame Delly, o material para uma tese feminista que vai defender em fevereiro de 1992 em Londres.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
27/05/1990

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