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Aramis

Um festival do real sem estrelismos

Salvador - Não há mais estrelas globais, rostos famosos, e mesmo belas "panteras" nas sessões. Ao contrário, as sessões acontecem em salas modestas, na maioria dos filmes projetados em 16 milímetros. A cobertura jornalística e da televisão é mínima. Os jornais nacionais ignoram e até a imprensa local dá pouco espaço. Entretanto, ininterruptamente, a Jornada Internacional de Cinema da Bahia, acontece desde 1972, com um prestígio cada vez maior. Ano a ano, seu idealizador e diretor, Guido Araújo, amplia esta amostragem do cinema que dificilmente chegará aos circuitos comerciais mas que tem a sua maior importância cultural. O cinema terceiro mundista, com imagens nem sempre agradáveis - muitas vezes de uma imensa crueldade da realidade que passa - mas que só valorizam este evento cinematográfico que, iniciado dia 8 último chega à sua 17a. edição. Cosme Alves, 52 anos, diretor do FestRio e da Cinemateca do Museu de Arte Moderna-Rio de Janeiro, um dos maiores responsáveis pela difusão do cinema do terceiro mundo no Brasil - e portanto um entusiasta da jornada desde a sua primeira edição, costuma repetir que "cada festival tem uma cara e o importante é entender a sua expressão". Assim, a Jornada de Cinema da Bahia poderia ser chamada de festival do real, ao reunir filmes e vídeos, em diferentes metragens, que mesmo quando têm (aparentemente) a ficção, não deixam de transmitir uma tremenda carga de informações e uma preocupação social e política. Mesmo lutando com o problema de sempre - a falta de maiores recursos - Guido Araújo trouxe este ano mais de 20 convidados estrangeiros, inclusive Michel Regnier, canadense, realizador de 140 filmes exibidos em quatro continentes e que com "Açúcar Negro"- um dilacerante documentário sobre as condições terríveis em que vivem 200 mil haitianos na República Dominicana, explorados como verdadeiros escravos no corte de cana-de-açúcar. Um filme amargo, terrível em suas imagens, e que numa cópia com legendas - financiada pela embaixada do Canadá - deverá ter algumas projeções especiais, em cinematecas e outros festivais. É de [se] esperar que Francisco Alves dos Santos, diretor da Cinemateca do Museu Guido Viaro - e que está aqui - [o] leve este ano a Curitiba, além dos filmes premiados na Jornada. Justificando a frase-lema "Por um Mundo Mais Humano" - a XVII Jornada de Cinema da Bahia, tem como um de seus pontos altos a mostra de direitos humanos. Antecipando-se às comemorações dos 40 anos da Declaração dos Direitos Humanos, Guido Araújo organizou uma amostragem de filmes do maior significado para esta data. Inicialmente, tentou, através do escritório da Unicef, no Brasil, trazer dois conhecidos "embaixadores" dos direitos humanos, o ator Harry Bellafont e atriz Liv Ullman, o que, evidentemente, faria com que a imprensa nacional desse a cobertura que esta Jornada merece - mas que lhe é negada. Infelizmente, a Unicef no Brasil pouco ajudou e nem Harry, nem Liv vieram. O que, entretanto, não tira a força da mostra, pois como diz Guido, "nada é mais importante para a humanidade que a luta pelos seus direitos e liberdades". A exibição de um documentário como "Açúcar Negro", sobre a situação dos haitianos; o documentário sobre Willie e Nelson Mandela, ao lado de dois filmes brasileiros inéditos devido à repressão - "Walsinho da Galiléia", que João Batista de Andrade realizou originalmente para a Rede Globo mas que nunca foi exibido, e a única experiência de Vladimir Herzog no cinema, o curta "Marimbras" (11 minutos) valorizam esta pequena amostragem sobre os direitos humanos. João Batista, um dos cineastas brasileiros mais respeitados, aqui presente, confirma que na primeira semana de janeiro inicia as filmagens de "Vlado", seu filme depoimento sobre Herzog, que foi seu amigo e companheiro de lutas políticas. Produção de um milhão e duzentos mil dólares, "Vlado" terá também a participação da Espanha, cuja vigorosa cinematografia se volta a projetos e co-produções na América do Sul. Os filmes em competição - na área competitiva, mais de uma dezena de curtas, médias e mesmo longas-metragens disputam os diferentes prêmios da Jornada. Entre os longas, dois candidatos fortes: "Terra para Rose", de Tetê de Moraes, premiado no Festival de Brasília (1987) e de Havana, "Gran e Coral" e "Memória Viva", do pernambucano Octávio Bezerra - que já trabalha em um novo longa, "Uma Avenida Chamada Brasil". Há trabalhos interessantíssimos em competição, refletindo várias tendências dos cineastas brasileiros que, com as maiores dificuldades, realizam filmes com abordagens e assuntos que vão desde o resgate de personalidades esquecidas como fez Fernado Severo em "O Mundo Perdido de Kozák" (um dos favoritos para a premiação na categoria curta) até reminiscências familiares, como o jornalista Nirto Venâncio em "Um Quotidiano Perdido no Tempo", sobre o crepúsculo da vida de três velhas senhoras moradoras de Crateús, Ceará - uma delas, avó do cineasta. Com mais de 150 filmes e vídeos em exibição nas diferentes mostras, esta XVII Jornada de Cinema da Bahia oferece oportunidades únicas de se assistir obras que necessitam de espaços alternativos para chegarem ao público em outras cidades. Assim, uma das mais felizes promoções paralelas foi a de realizar duas reuniões para discussão da existência de espaços cinematográficos para filmes (vídeos especiais). Por exemplo, a jornalista Ângela José, que trabalha numa tese de doutorado sobre o cineasta Olney São Paulo, organizou uma mostra do realizador de "Manhã Cinzenta" (filme de 1968, que lhe custou meses de prisão) e que aqui está sendo exibido - mas que irá ao Festival de Brasília, em outubro - e que também poderá ser apresentado em Curitiba se houver boa vontade da Fucucu. Já a mostra de desenhos premiados no Festival de Anecy, na França, mostra bienal, considerada a mais importante na área do cinema de animação no mundo - só teve lugar aqui, e isto graças ao respeito que o seu diretor, Jean Luc Xiberras, tem pelo trabalho desenvolvido por Guido Araújo. Outras promoções paralelas, que também mostram aspectos de realizadores preocupados em documentarem imagens de seu tempo - como a do cinema chicano, com vídeos e filmes sobre os imigrantes de fala espanhola em Nova Iorque. Afinal, "La Bamba" - com seu sucesso comercial - mostrou ao grande público a existência em outra América, aqui vista nas imagens de obras como "The Lemon Grove Infident", "Vaquero: The Forgotten Cowboy" e outros que, com vagar, merecem maiores e detalhados registros. LEGENDA FOTO - Herzog: única experiência em cinema na Jornada da Bahia.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
14/09/1988

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