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Aramis

Uma tese sobre "Cabra Marcado para Morrer"

1962. Dois de abril. João Pedro Teixeira, líder camponês, presidente da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, presbiteriano, analfabeto e pai de onze filhos, morre fuzilado, a caminho de Sapé, na estrada do Café do Vento, num tocaia previamente anunciada pelos latifúndios do Grupo da Várzea. 1983, Doze de agosto. Margarida Maria Alves, líder camponesa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, a poucos quilômetros de Sapé, morre com um tiro no rosto, à porta de casa e diante dos filhos menores, em crime aparentemente planejado e executado pelos latifundiários do Grupo da Várzea. 1984, Vinte e três de novembro. O filme "Cabra Marcado para Morrer", um humano documentário sobre o assassinato de João Pedro Teixeira e a separação posterior da família, com a viúva, dona Elisabete, obrigada a esconder-se, com nome falso, e afastando-se dos filhos, emociona o público do Festival Internacional do Cinema, Televisão e Vídeo do Rio de Janeiro. No final do festival, o filme de Eduardo Coutinho receberia os quatro principais prêmios, iniciando um ciclo de premiações em festivais internacionais. 1985, Treze de março. Em Curitiba, com a presença de Eduardo Coutinho, "Cabra Marcado para Morrer" inaugura o Cine Ritz, onde permanece em exibição mais algumas semanas. 1985, Oito de Abril - Seis dias após o 23º aniversário do assassinato de João Pedro Teixeira, no anfiteatro do edifício D. Pedro I, da Universidade Federal do Paraná, o professor César Augusto Carneiro Benevides, 32 anos, paraibano de nascimento mas há mais de 20 anos radicado em Londrina, estará defendendo sua dissertação de mestrado, requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre no curso de pós-graduação em História Demográfica. Título da tese: "Camponeses em Marcha - Estudo das Ligas Camponesas Paraibanas (1960-1964)". Um dos personagens centrais do estudo: João Pedro Teixeira. Nesses 22 anos que separam o duplo trucidamento, vários assassinatos foram cometidos, todos com a garantia prévia da impunidade e tendo como vítimas camponeses, líderes sindicais, advogados dos trabalhadores rurais e pessoas comprometidas com os direitos humanos no Nordeste. Coincidentemente, ao mesmo tempo em que o filme que Eduardo Coutinho levou vinte anos para concluir, chega às telas e emociona os brasileiros, César Benevides apresenta o primeiro estudo de profundidade sobre as Ligas Camponesas da Paraíba, num trabalho que em breve estará também em livros, tal a atualidade e importância do tema pesquisado. Fruto de mais de cinco anos de pesquisas e centenas de horas de entrevistas gravadas com participantes das Ligas Camponesas e da política paraibana, a tese "Camponeses em Marcha" já nasce como um documento de indispensável leitura para todos que desejam conhecer melhor a história brasileira contemporânea, especialmente as lutas sociais no Nordeste, até hoje insuficientemente estudantes. Hoje radicado em Curitiba, trabalhando como assessor de marketing de um Banco daqui, César Benevides encontrou um importante consultor para sua tese: um tio, o ex-deputado José Joffily, casado em 1964 e há 20 anos residindo em Londrina, onde é presidente do grupo Herbitécnica. Jofilly tem vários livros publicados, todos sobre aspectos da história e da política brasileira, e foi num deles, sobre a morte do governador João Pessoa, da Paraíba, que a cineasta Tizuka Yamazaki encontrou roteiro para o filme "Parahiba, Mulher Macho", de 1983 (esta semana, Tizuka está em Gramado, concorrendo no XIII Festival do Cinema Brasileiro, com seu novo filme, "Patriamada"). xxx A tese de Benevides tem o sabor de um apaixonante livro sobre política. Há intrigas, traições, assassinatos, ganância, etc., elementos que marcaram - e marcam - a realidade brasileira. Escrito num estilo agradável, sem o academicismo que torna intolerável a absorção de tantas teses, mas sem deixar de ser preciso nos dados e informações, o que demonstra criterioso trabalho de pesquisa, a futura edição da tese, em forma de livro, deverá garantir, decerto, um novo best-seller ao editor que tiver a sorte de contratar a publicação. Aliás, a riqueza temática das Ligas Camponesas - e, contraditoriamente, a inexistência de bibliografia a respeito - já havia sido lembrada quando da exibição de "Cabra Marcado para Morrer", no FestRio. Chegamos a sugerir a Eduardo Coutinho a edição do roteiro do filme, acompanhado da descrição da dificuldade que foi sua conclusão (iniciado em fevereiro/64, foi interrompido pela revolução e só pode ser retomado em 1982/82). E só pela falta de tempo - desde novembro que Coutinho e o produtor Zelito Viana estão visitando vários países, para acompanhar a carreira desse filme - é que impediu que um livro já tivesse sido lançado. Embora não seja uma tese apenas sobre João Pedro Teixeira, "Camponeses em Marcha" é um estudo de 250 páginas, mais de 50 ilustrações, que traz inúmeras informações relacionadas ao personagem do filme de Coutinho. xxx Já na introdução da tese, César Benevides faz algumas colocações: "O que pretendia João Pedro Teixeira, em 1962? O que pretendiam Pedro Fazendeiro e Nego Fubá, líderes camponeses desaparecidos a 7 de setembro de 1964, depois de libertados do 15º Regimento de Infantaria aquartelada na Capital paraibana? O que pretendia Margarida Alves, em 1983? O que pretendiam tantos outros homens e mulheres do campo assassinados ou desaparecidos, se não terra para plantar e alguma dignidade para viver? João Pedro Teixeira, no início de sua luta política, alimentava a aspiração elementar de estender a legislação trabalhista ao homem do campo. Ouvindo sua mulher, Elizabeth, semi-analfabeta, ler os jornais da Capital, passou a se empenhar pela concessão da carteira profissional e, consequentemente, pelo reconhecimento da lei do salário mínimo, do descanso semanal remunerado, do direito de férias e previdência social. Configurada a inércia dos sindicatos rurais, passou a batalhar pela criação das Ligas Camponesas da Paraíba, que implicava na organização do campesinato, capaz de exterminar as formas de sujeição ao proprietário rural e garantir o direito à terra: de nela nascer, plantar, viver e morrer. O que Pedro Fazendeiro e Nego Fubá queriam, em 1964, era a reforma agrária, a queda do latifúndio, trabalho, comida, escola e saúde para os homens do campo. Nessa luta, de caráter e praxis nitidamente políticos, engajou-se Margarida Maria Alves, inconformada com o não cumprimento do Estatuto da Terra e do Estatuto do Trabalhador Rural, de metas bem definidas. O trucidamento de Margarida Alves, de João Pedro Teixeira e tantos outros está inscrito num contexto político-social, de luta e reivindicação, a que se opuseram os interesses do latifúndio e das multinacionais instaladas no Brasil, seguindo-se as perseguições dos camponeses, a expropriação, a expulsão, a prisão, as maquinações faciosas, a ação violenta e traiçoeira do Sindicato da Morte, mantido, na Paraíba, segundo a tradição oral, pelos elementos dos grupos Velozo Borges e Ribeiro Coutinho, com a conivência e apoio concreto das autoridades governamentais". xxx A repercussão que "Cabra Marcado para Morrer" vem encontrando há cinco meses, desde sua premiação no FestRio, não é sem razão. A exemplo dos dois documentários de Sílvio Tendler, "Os Anos JK" e "Jango", Eduardo Coutinho resgata um recente período da vida política brasileira e, em imagens emocionantes, dá a uma nova geração, que não acompanhou aqueles fatos, uma informação necessária. Indispensável, também, aos mais velhos, que, à distância, pelos jornais e revistas, tiveram talvez, a visão distorcida de um período quente da vida brasileira e que, passadas apenas duas décadas, em suas origens ainda conserva os mesmos problemas. Com isso, a tese de César Benevides, a ser defendida será mais do que um simples trabalho acadêmico: é um jornalismo retrospectivo e de investigação. LEGENDA FOTO - Manifestações de rua, em João Pessoa, em 1962, promovidas pelas Ligas Camponesas.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
28/03/1985

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