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Aramis

Vera, uma bela mulher na "cozinha" da boa música

Excetuando-se os brasileiros que procuraram a saída dos aeroportos de Viracopos (depois Cumbica), e, principalmente, o Galeão, para fazer nos Estados Unidos as suas carreiras, podem-se contar nos dedos os bateristas-percussionistas que, no Brasil, conseguiram chegar aos seus discos-solos. Imagine-se então, as limitações para as mulheres que, corajosamente, optaram por estes instrumentos - preconceituosamente vistos como "masculinos". Pois uma baterista-mulher, além de tudo muito bonita e charmosa, fez mais do que simplesmente gravar um elepê solo: fundou e vem editando a primeira revista brasileira especializada em bateria e percussão, circulando há três anos e que vem tendo uma aceitação cada vez maior: "Eco" (*). "Lugar de mulher é na cozinha?" Auto-ironizando a machista colocação, Vera Figueiredo, morena, charmosa, olhar decidido, diz em sua revista "Eco", número 4: - "Sem dúvida. Ainda mais se for uma "cozinha" composta de bateria, pratos e tambores, onde o tempero picante dos ritmos latinos é o prato principal". O primeiro trabalho solo da baterista Vera Figueiredo (produção independente, mas distribuída por Baratos Afins, Avenida São João, 439, 2º - loja 316/318, São Paulo, CEP 01035), revela duas características de uma só vez: alta qualidade e pioneirismo. Há 16 anos, Vera está na estrada. Já atuou com músicos como João Donato, Toninho Hora, Eliane Elias (hoje superstar nos EUA), Hermeto Paschoal e Arismar do Espírito Santo, entre outros. O seu exemplo já produziu frutos: outra baterista, Lilian Carmona, foi à luta e gravou seu elepê solo - que, infelizmente, não chegou até hoje aos nossos ouvidos. Carmona, é bom lembrar, foi convidada por George Shearing a acompanhá-lo em suas apresentações no Brasil e acabou indo para os Estados Unidos. Vera, por enquanto, esta no Brasil. Seu elepê - que é inútil procurar nas lojas mas pode ser solicitado na Baratos Afins (endereço acima) teria entrado entre os melhores álbuns instrumentais do ano passado, se nos tivesse chegado a tempo. Paulista, Vera ganhou a sua primeira bateria quando era criança. Era um brinquedo que definiria sua vida. Já adolescente, foi estudar no Centro Livre de Aprendizagem Musical, do Zimbo Trio, estudando dois anos com Rubinho Barsotti. Depois fez um curso de percussão com João Boulder, durante um festival de inverno em Campos do Jordão. Freqüentou o curso livre da Universidade Paulista e, mais tarde, a Escola Municipal de Música por um ano. Tocou na Orquestra Juvenil do Estado de São Paulo, por dois anos, quando John Neschling era o seu regente. Interessando-se pela música popular brasileira, acabaria integrando-se ao grupo instrumental Kali, formado por mulheres - e que, infelizmente, após um elepê gravado no Som da Gente (1986), se separou. Não definitivamente, pois, segundo Vera, "sinto que o grupo passa por um momento de transformação (aliás a deusa Kali é a deusa da transformação). Quando voltarmos a trabalhar juntas, estaremos fazendo coisas muito melhores". Somem-se aos seus estudos de percussão, mais nove anos de piano com Cecília Gorini e um interesse por vocais. Resultado: uma artista instrumentista-compositora segura, com quilometragem sonora que a fez acompanhar cantoras desde Clementina de Jesus à suava Eliete Negreiros e, em suas experiências eruditas ter uma visão mais ampla das potencialidades da percussão. Neste seu caprichado álbum de estréia, Vera soube cercar-se de excelentes músicos-companheiros: o baixista Arismar, sua esposa, a pianista-arranjadora Silvinha Goes, que estão presentes já na faixa de abertura, "Julinho" (homenagem de Vera a um grande amigo), substituídos depois por outros instrumentistas - Rubinho Chacal (flauta), Serginho Oliveira (teclados) e até participações muito especiais, como do grande Hermeto Paschoal no esfuziante "Paraíba" (Luiz Gonzaga) e "De Vera" (Hermeto), que encerram o disco. Arranjos distribuídos entre vários amigos - Silvinha Goes, Bruce Scott, Alex Frontera (também na percussão em várias faixas), Hermeto e a própria Vera, mostram a competência com que cada sessão sonora foi desenvolvida. Arnaldo Solteiro, crítico da "Tribuna da Imprensa", e experiente jazzófilo, observa no esclarecedor texto de contracapa que na metade do repertório, Vera exercita sua faceta de compositora - iniciando por "Julinho", prosseguindo com "Eco" (no qual o sax-tenor de Ed Cortes faz uma citação de "Ribbon in the Sky", de Stevie Wonder), dando a "Araçá" um cativante tom de lirismo e sutileza, enquanto "Batuque na Casinha do Figão" precede ao percussivo "Bumba meu Boi", um diálogo improvisado que estabelece com o percussionista Rubinho Chacal. Bruce Scott, cantor norte-americano com quem Vera fez temporada no club de jazz californiano "At My Place", aparece como autor de duas faixas: "Jamaica" e "Tudo Bem". Curiosidade ótima: a leitura que Vera fez do tema que o japonês Ryuichi Sakamoto criou para o filme "Merry Christmas, Mr. Lawrence" ("Furyo em Nome da Honra", de Nagisa Oshima), numa interpretação em que atuam Gê Cortes no baixo, Alex Frontera nos teclados, Rubinho Chacal na percussão e Ed Cortes no sax-tenor. Criativo da primeira à última faixa, este álbum - dedicado ao catarina-curitibano Airto Moreira e ao americano Steve Gaad (que reconhece como suas grandes influências), revela uma instrumentista-compositora de alta voltagem. Vamos aguardar seus próximos passos. Nota (*) Publicada através da Art Classic - Promoções e Merchandising (telefone 743-2946; Caixa Postal 282, São Caetano do Sul, São Paulo, CEP 09540), "Eco" tem como editor responsável Roberto Moraes Sallabery. Aos interessados, aconselha-se fazer assinatura, já que dificilmente esta publicação chega às bancas do Paraná.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
4
07/04/1991

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