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Aramis

Verdades & Mentiras

"O cinema-verdade? Prefiro o cinema-mentira. A mentira e sempre mais interessante do que a verdade. A mentira é a alma do espetáculo. A ficção pode ir em direção de uma verdade mais aguda do que a realidade cotidiana e aparente. Não e necessário que as coisas que mostramos sejam autênticas. Em geral é preferível que elas não o sejam. O que deve ser autêntica é a emoção que sentimos ao mostrar e ao exprimir". (Federico Fellini) X as primeiras imagens de "Ela Nave Va"(cine Itália, hoje e amanhã, últimas exibições ) procuram copiar, propositadamente, o cinema primitivo: imagens foscas, desfocadas, com riscos - co6mo de um primeiro cinematographo - semelhante aquele que, seqüências adiante, o fã da Edmea Tutti, usa para rever insistentemente a sua diva em imagens vivas. Praticamente todo um prólogo é construído como homenagem ao cinema mudo: planos fixos, arranhados pelo tempo ou mau uso, com letreiros, sem som algum - até que surge o som do piano, como no tempo do cinema mudi. Só aos poucos as imagens ganham som e cor, contornos mais naturais surgem acentuando o lado artificialmente - o real e o irreal do que se verá adiante. No final, na penúltima seqüência, o espectador é colocado dentro do estúdio 5 da Cinecittá onde "E La Nave Va" foi rodado. Aparece Fellini e sua equipe no trabalho. O grande navio Gloria N é apenas a ilusão do sonho, o cenário - é como se fosse a informação de que "tudo não passou de um filme". E na derradeira imagem, o personagem condutor da estória, o jornalista Orlando - num bote salva-vidas, ao lado do rinoceronte - volta a ser focalizado na cor sépia. Há uma espécie de ciclo que se fecha entre o início e o final de "E La Nave Va" em seu sentido de fantasia, de mentira, de ilução. Em seus filmes, entrevistas e textos Federico Fellini nunca escondeu seu amor a mentira, ao mágico. Num livro recentemente produzido e lançado no Brasil "Fellini por Fellini", tradução de José Antonio Pinheiro Machado, Paulo Hecker Fº e Zilá Bernd, 164 páginas, L&PM, Cr$ 3.000,00) , o mais conhecido dos cineastas italianos contemporâneos insiste em colocar esta sua visão mentirosa do mundo. Para quem se dedica há 45 anos (de seus 64) ao cinema, considerando-se sua colaboração inicial com Mário Mattoli entre 1934/41 - e, a partir de seus próprios filmes (iniciando com "Mulheres e Lluzes/-Luci del Varieta", 1950), tem uma obra absolutamente pessoal, uma e indivisível - um filme como "E La Nave Va" não surpreende-apenas emociona e entusiasma. Neste filme que teve sua estréia mundial há menos de um ano (10 de setembro de 1983, exibia hors concours no Festival de Veneza) e chegou ao Brasil em lançamento simultâneo São Paulo - Curitiba, Fellini se mostra apenas um contador de estórias. Não há o simbolismo político de "Prova D' Orchestra"(1978, inédito entre nós) e a visão de guerra ao sexo feminino no anárquico "A Cidade das Mulheres" (La Citta delle Donne). Ao contrário, como revelou em inúmeras entrevistas, a idéia de "E La Nave Va "surgiu a partir de um simples registro na imprensa: a cantora Maria Callas (Maria Kallas Meneghini, Nova Iorque 1923 - Paris, 1978) deixou em seu testamento, ordens que deveria ter seu corpo cremado e as cinzas jogadas ao redor de uma ilha grega. Desta notícia, Fellini e seu colaborador habitual - Tonino Guerra - construiu um roteiro perfeito. A ação foi retroagida para alguns dias antes do início da I Guerra Mundial e a bordo de um luxuoso navio, o Glória N, os colegas da companhia de ópera de uma cantora famosa - Edmea Tuteia - mais admiradores da Diva, se reúnem para a última homenagem. Uma Viagem de alguns dias, narrada por um velho jornalista, Orlando (marcante atuação do Inglês Freddie Jones ), que deu uma forma irônica e profunda, vai apresentando aos espectadores os passageiros a cantora Ildebrana Cuffari (Barbara Jefford), o fleugmático inglês sir Reginald Dongby (Peter Celier), que aceita a traição de sua ninfomana esposa Violet (Norma West), o chefe da orquestra Albertini (Paola Paoloni), o grão-duque Herzog (Fiorenzo Serra), a cega princesa Lherimia )Pina Bausch), o Conde de Bassano (Pasquale Zitti), os irmãos maestro Rubetti (Vittorio Zarfatti/Umberto Zuanelli) - enfim todos personagens definidos dentro das características que Fellini, como nenhum outro cineasta, sabe construir. As imagens de Edmea (Janet Suzman) surgem nas fotografias e nas imagens dos velhos filmes. Esta viagem da vida - como diz Orlando em certo momento - no mar Adriático, reconstruído em estúdios e com elementos daquela magia tão terna que Fellini transpõe tem o sentido mágico de fazer o espectador refletir por horas, após ver o filme. Em seus 18 filmes Fellini jamais deixou de, numa única vez, ser absolutamente coerente em seus propósitos de humanismo e entendimento das pessoas. Hoje, consagrado e trabalhando lentamente em seus projetos pode fazer um filme em torno da própria ilusão do cinema/vida, assim como outro gênio do cinema Osron Welles, num trabalho de 3 anos (1973/75) realizou um documentário absolutamente cínico (e genial) intitulado "Verdades & Mentiras" (F. for Fake), do qual "E La Nave Va" se aproxima muito mais do que "A Naudos Insensatos" ou "Náufragos do Titânica"- para só citar dois exemplos de filmes em que um mesmo espaço, num determinado período - reúnem-se circunstancialmente personalidades tão ambíguas. LEGENDA TEXTO - A cantora Ildebrana Cuffari (Barbara Jefford ) - ao centro - um dos tipos marcantes de "E La Nave Va".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
1
10/07/1984

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