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Aramis

Vinícius sem Lágrimas

Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva. De repente não tinha pai. (Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão) *** A notícia chegou também pelo telefone. Do amigo Jorge, depois reiterado pelo interurbano do poeta e irmão Hermínio Carvalho. Desta vez, infelizmente, não era apenas um boato. O poeta Vinícius de Moraes morreu. Há alguns meses, a notícia de sua morte - que chegou a ser transmitida por rádio de São Paulo - já havia provocado comoção e uma crônica muito pessoal, que, infelizmente, não teve que ser publicada. Mais uma vez, o poeta havia conseguido driblar esta presença impossível de afastar, e que, por ele próprio, há muitos anos já era assim descrita. A morte vem de longe Do fundo dos céus Vem para os meus olhos Virá para os teus Desce das estrelas Das brancas estrelas As loucas estrelas Trânsfugas de Deus Chega impressentida Nunca inesperada Ela que é na vida a grande esperada! A desesperada Do amor fraticida Dos homens, ai! dos homens Que matam a morte Por medo da vida. *** Bastaria este poema como elegia do poeta que o Brasil (e o mundo) perdeu na madrugada de ontem - e que deixou um vázio maior nos corações e mentes de todos. Se Vinícius de Moraes existe, tudo é permitido, mais do que uma frase de efeito que Nelson Rodrigues colocava na boca de um de seus, personagens, o poeta foi a presença mais forte na vida cultural, poética, músical - na vida, enfim, deste País, nestas últimas décadas. Literariamente podem até fazerem restrições a poesia, talvez de sua última fase (embora seja altamente discutível tais colocações). Para muitos, houve várias fases deste homem que, mais do que nenhum outro, assumiu inteiramente a sua vida, os seus amores, as suas barras. De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu prato Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. *** Vinícius sem lágrimas. Assim desejo recordar o Poeta, Amigo e Ser Humano - que mais intensamente executou a sua receita de viver. Não importa, sua biografia oficial, as crônicas de centenas de seus milhares de amigos e admiradores, espalhados por este Brasil que eles, como menestral de nossos dias, percorreu tantas vezes, junto com os companheiros queridos - Toquinho, Azeitona e Mutinha, os três mosqueteiros na estrada, cantandos numa música nunca gravada, mas que teve sua audição primeira aos meus ouvidos. numa madrugada inesquecível, após muitas torrentes de sensibilidade e até uma canção, indicada por brincadeira e que como tantas, está entre as inéditas, já que a capacidade de produção do Poeta era imensa, incomensurável. Vinícius sem lágrimas. Assim se deve lembrar, sempre, o Homem que tudo assumiu, tudo amou, tudo cantou. Sempre com a consciência e o coração, que o fez sempre honesto, puro e único. O homem que amava as mulheres - e que com o mundo dividiu um amor hoje cada vez mercadoria mais rara nos armários de secos (olhares) e molhados (coração) da vida. No teu branco seio eu choro Minhas lágrimas descem pelo teu ventre E se embebedam no perfume do teu sexo. Mulher, que máquina és, que só me tens desesperado Confuso, criança para te conter! Oh, não feches os teus braços sobre a minha tristeza, não! Ah, não abandones a tua boca à minha inocência, não! Homem sou belo Macho sou forte, poeta sou altíssimo E só a pureza, me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas. *** As biografias de Vinícius teriam que sem muitas para darem um pouco de sua dimensão. Como disse outra pessoa admirável, que a vida levou muito cedo, Sérgio Porto, ele só poderia ter dois "S " no nome: ViníciuS de MoraeS, já que sendo um, era tantos ao mesmo tempo. O poeta jovem, o diplomata, o jornalista, o crítico, o cronista, o letrista e o intérprete de suas músicas. Responda, alguém, rapidamente, qual a presença mais forte na música brasileira, a partir dos anos 50, do que Vinícius? Dedilhando seu violão - raramente em público, mas fazendo desde as letras mais simples até as obras-primas de um "Sei Que Vou te Amar", com Tom, "Minha Namorada", "Primavera" e "Marcha de Quarta-Feira de Cinzas", com Carlos Lyra, uma "Benção" com Baden, e, quando tantos beócios o viam como produtor de "easy music", em sua última fase com Toquinho, nos dava a emocionante "O Filho Que Eu Quero Ter". A emoção é grande, tanto quanto a tristeza, mas insisto: Vinícius sem lágrimas. Como ele gostaria que fosse. O Vinícius que a 27 de dezembro de 1971, pela primeira vez em Curitiba, abençoava com o "santo whiskinho", o Teatro do Paiol, com fluidos tão positivos que a pequena casa de espetáculos se transformou, por muito tempo, no mais ativo núcleo de cultura desta cidade sem portas. O Vinícius que aqui, como sempre e em todos os lugares que esteve, sempre foi a mais cordial das pessoas, capaz de suportar o mais irritante dos chatos ou a menos inconvenientes das fãs. O Vinícius capaz de relembrar por horas de amigos que já se foram, como fez, por ocasião de sua última presença entre nós, há pouco mais de um ano, após seu show no Guaíra. Junto com Toquinho, o empresário Fred Rossi, a sua última, grande e admirável companheira, Gilda Matosso, mais este repórter e o jornalista Wilson Bueno, Vinícius falou de Lúcio e Maria Helena Cardoso, de uma geração de intelectuais e pessoas que, como ele, souberam exercer o oficíal de viver. E naquela noite, ao longo de aquecedores vinhos chilenos, no Schwartkatz, Vinícius e Toquinho mostravam, a então recem-concluída balada dedicada a Gilda, sobrinha-neta do grande Francisco Mattoso (parceiro de Lamartine Babo na valsa em "Sonhei Que Estava Tão Linda") e que ganhou o nome por ter nascido no ano em que as telas do mundo eram iluminadas por Rita Hayworth, no auge de sua beleza, vivendo "a mulher inesquecível" no filme de Charles Vidor, 34 anos passados. Nos abismos do infinito Uma estrela apareceu e da terá ouvi-se um grito Gilda, Gilda era eu maravilhado ante a sua aparição que ao poucos fiu levado nos véus de um bailado pela imensidão aos caprichos do seu rastro como um pobre astro morto de paixão... *** Seriam muitos os Vinícius para recordar. É triste pensar que só hoje, com sua morte, se falará mais desta pessoa extraordinária, deste porta único, deste ser humano único, que merecia, já há muito, uma ampla bibliografia, séria, profunda, a seu respeito. Só há algumas semanas, numa série de livros didáticos, ("Literatura Comentada" , Abril), Vinícius foi lembrado para um texto sobre sua vida e obra. Ele que, pelo muito que fez em seus intensamente bem vividos 66 anos, dividiu com os todos os homens e mulheres do mundo, a sua alma, os seus sentimentos - e tornou menos duros, tristes e solitários os dias de todos nós. Mesmo quando falava da separação, num de seus mais prefeitos sonetos. De repente do rido fez-se o pranto Silencioso e branco a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto De repente da calma fez-se o vento Que nos olhos desfez a última chama É da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama. De repente, não mais que de repente Fez-se de triste o que fez amante E de sozinho o que fez contente Fez-se do amigo próximo o distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente. *** Vinícius sem lágrimas. Quais as palavras capazes de poder dizer, num breve registro de moção, pressionado pelo tempo e dor, aquilo que ele também dominou: o ofício de dizer as coisas dos homens, da vida, do mundo. Para isso fomos feitos: Para lembrar e ser lembrados Para chorar e fazer chorar Para enterras os nossos mortos - Por isso temos braços longos para os adeuses Mãos para colher o que foi dado Dedos para cavar a terra. Assim será a nossa vida: Uma tarde sempre a aquecer Uma estrela a se apagar na treva Um caminho entre dois túmulos - Por isso precisamos velar Falar baixo, pisar leve, ver A noite dormir em silêncio. Não há muito que dizer: Uma canção sobre um berço Um verso, talvez, de amor Uma prece por quem se vai - Mas que essa hora não esqueça E por ela os nossos corações Se deixem, graves e simples. Pois para isso fomos feitos: Para a esperança no milagre Para a participação da poesia Para ver a face da morte - De repente nunca mais esperaremos... Hoje a noite é jovem; da morte, apenas Nascemos, imensamente. *** Vinícius sem lágrimas. Da morte, nascemos, imensamente. O poeta que disse "... tristeza não tem fim/felicidade sim" que dedicou ao operário uma das obras-primas de nossa literatura ("O dia da criação"), que falou, sempre, da vida, do amor, e mesmo quando lembrou a morte, o fez com a certeza de que a vida, uma só ("e ninguém vai me provar que há duas, a não ser que haja certidão,assinada em baixo, Deus... e com firma reconhecida em cartório") e por isso, a mensagem à poesia, ao ser humano, sempre contaram muito mais do que o poder dos homens, o dinheiro as glórias passageiras. Vinícius, como tantos outros Homens iluminados da terra, deixa, entre tantas lições, a da pernidade do pensamento, do amor, das idéias, da poesia. E mostra quão pequenos são os indígnos seres que, momentaneamente no poder, buscam humilhar e ofender aqueles que não lhe tragam imediatos frutos políticos. No futuro - que já é agora - pode-se esquecer dos homens que detiveram o poder, que mandaram e desmandaram no Brasil durante os 66 anos em viveu o cidadão Marcus Vinícius da Cruz de Melo Morais, diplomata cassado pelo AI-5 , perseguido muitas vezes pela Censura, visto com ódio por pobres senhores ricos do poder. Mas, enquanto houver um pouco de amor (e ilusão, talvez) no coração do último dos seres humanos, Vinícius será sempre lembrado, como hoje é Shakespeare ou Rilke. Quantos somos , não sei... Somos um, talvez dois, três talvez quatro; cinco, talvez nada Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam doze Terras Quantos, não sei... Só sei que somos muitos - o desespero da dízima infinita e que somos belos como deuses mas somos trágicos. (...) Nascemos da fonte e dentro das eras vagamos como sementes invisíveis o coração dos mundos e dos homens Deixando atrás de nós o espaço como a memória latente da nossa vida anterior Porque o espaço é o tempo morto - o espaço e a memória do poeta Como o tempo vivo é a memória do homem sobre a terra. *** Vinícius sem lágrimas. Vinícius de "Um Pouco de Ilusão", pinçado de sua "Valsa do Bordel", por quase 10 anos vetado pela censura, e que daria título ao elepê da despedida, com o qual a multinacional Ariola inaugurou a sua presença no mercado nacional. Onde Vinícius, lamentava o amor que acabou em "por que será" (parceria com Toquinho/Carlinhos Vergueira), indagando Por que será/que eu ando triste por te adorar Por que será/ que a vida insiste em se mostrar mais distraída dentro de um bar Por que será/ que o nosso assunto já se acabou Por que será/ que o era junto se separou e o que era muito se definhou. Em "Caro Raul", uma mensagem a tantos amigos, das noites do Carreta - restaurante paulista, como o Antonio`s, no Rio, que deve sua fama a presença de pessoas como Vinícius. Ou então na faixa mais dolorida do elepê, "Amigos Meus", a premonição desta despedida que hoje, com esforço para que as lágrimas não embotem, a memória de Vinícius Poesia, nos faz buscar em suas próprias palavras, a melhor forma de dizer até breve, poeta maior, irmão de sempre! Amigos meus Tá chegando a hora Em que a tristeza aproveita pra entrar E todos nós vamos ter que ir embora Pra vida lá fora continuar Tem sempre aquele que toma mais uma no bar Tem sempre um outro que vai direitinho pro lar Mas tem também uma sala que está vazia Sem luz, sem amor, sombria Prontinha pro show voltar E em novo dia a gente vai ver novamente A sala se enche de gente Pra gente recomeçar. *** Vinícius sem lágrimas. Poeta, que se foi apenas fisicamente, mas que deixa a certeza de que um novo dia a gente vai ver novamente/a sala se encher de gente/pra gente recomeçar. Oh! quantas lições de vida, Vinícius, você nos deixou! Quanto amor dividido, quanta poesia que permanece. Acima de tudo a certeza de que o amor deve (ainda) ser vivido intensamente, a consciência prevalece que a vida é - e sempre será - está difícil arte do encontro, mesmo com todos os desencontros da vida. Poeta da prosa e verso, da vida e da morte, eterno amigo, lembrança para sempre: Você sempre estará com todos os homens e mulheres que sabem amar e acreditar, por mais pancadas que se leve, no ser humano. Seu epitáfio, escrito, sei lá há quantos anos, e que releio agora em sua <>, diz, muito mais do que , todas as milhares de palavras, escritas e faladas, desde ontem, quando da primeira notícia de sua morte, talvez não tenha conseguido transmitir. Aqui jaz o Sol Que criou a aurora E deu a luz ao dia e apascentou a tarde O mágico pastor De mãos luminosas Que fecundou as rosas Aqui jaz o Sol O andrógino meigo E violento, que Possui a forma De todas as mulheres E morreu no mar. FOTO LEGENDA - Alguns momentos de Vinícius de Moraes - que inaugurou o Teatro do paiol - em Curitiba. Ao lado de Marília Medalha, Vinícius sendo entrevistado, Vinícius ensaiando, Vinícius cantando, Vinícius encantando.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Teatro
1
11/07/1980

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