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Aramis

A volta de Raulzinho

MEIO inesperadamente, chegou ontem a Curitiba o músico Raulzinho. Trombonista reconhecido nos EUA como um dos mais importantes instrumentistas de jazz, nome forte a liderar os "jazz poll" das revistas "Down Beat" e "Play boy", a partir deste ano, fez questão de voltar a cidade onde viveu muitos anos, então um músico anônimo e incompreendido. Ontem, em companhia de um de seus melhores amigos da terra, o pistonista Osvald Siqueira, Raulzinho reviu velhos amigos e inclusive esteve na Redação de O ESTADO, contando sobre o seu atual trabalho nos Estados Unidos. Raulzinho continua a ser o mesmo músico simples e descontraído, muitas vezes desligado das coisas terra-a-terra, mas que ao soprar o seu trombone atinge a novas estruturas sonoras. Aqui, um pouco de Raulzinho e seus tempos de Curitiba. xxx Aos que têm mais de 30 anos e, a partir da segunda metade dos anos 50, passaram a acompanhar a música instrumental no Paraná, Raulzinho (Raul de Souza, 44 anos) é um nome conhecido: carioca, veio para cá como integrante da banda da Escola de Oficiais Especialistas e Guardas, numa época em que aquela unidade militar reunia alguns dos melhores instrumentistas de sopro do Brasil. Evidentemente, que Raulzinho, com toda sua criatividade sonora não poderia se restringir apenas ao som disciplinado do repertório da banda e assim passou a tocar em clubes e orquestras, principalmente na de Osval Siqueira - na época dividindo com a de Genésio Ramalho a preferência dos clubes. As duas orquestras, com respeitáveis naipes de sopros, procuravam seguir as linhas das big-bands americanas e o seu som encantava os bailes dos clubes da cidade. Delas, só ficou a saudade - pois tanto Genésio como Osval foram obrigados, no decorrer dos anos 60, a dispensá-las: a progressiva falência dos clubes, a concorrência dos grupos iê-iê e posteriormente a música de fita (antes do advento da época da discotheque) condenaram ao fim as grandes orquestras - hoje restando pouquíssimas em todo o Brasil (enquanto conjuntos elétro-acústicos como o Três [do Rio] proliferaram, com esquemas empresariais bem organizados). xxx Limitado a música militar da banda da EOEG e a dançante na orquestra de Osval, Raulzinho sentia, entretanto, necessidade de extravasar sua formação jazzística. Mesmo nas boates - que eram muitas nos anos 50/60 - o seu som avançado, criativo, não agradava ao público tradicional e assim, no final das noites, após cumprido uma jornada de trabalho, muitas vezes Raulzinho e mais alguns músicos que o admiravam saíam pela noite afora, fazendo jazz-serenatas nas ruas e praças. No Passeio Público, onde Paulo Wenot (1916-1966) era o arrendatário do Clube Tropical (hoje o familiar "Lá no Pasquarele"), Raulzinho tocou durante meses: até à s4 horas, os foxes e boleros dançantes. Depois desta hora, saía pelas alamedas, fazendo serenatas à búfalos, macacos e aves, com o seu sopro inconfundível. Outras vezes, era na Praça Osório, vendo o sol chegar, que Raulzinho cercado de alguns poucos amigos que o sabiam admirar a sua arte - como o jornalista Roberto Muggiatti, hoje diretor da "Manchete" e o então estudante José Octávio Guizzo, agora um dos mais importantes advogados em Mato Grosso - mostrava um som jazzístico que, 20 anos depois, viria a ser apreciado em toda sua extensão, em todo o mundo. xxx Como Raulzinho, outro músico também participava destas jam-sesions ao ar livre, improvisadas e incompreendidas: o catarinense Airto Guimorvan Moreira, de Itaiópolis até os 14 anos em Ponta Grossa, e que se destacava já como um inventivo percussionista. Ambos acabaram deixando Curitiba antes de 1964: Airto, depois de integrar o bailável grupo de Guimarães (com o qual viajou pelo Brasil todo) e ao lado de Cleber e César Camargo Mariano, o Sambalaço Trio, formaria com Hermeto Paschoal, Theo de Barros e Heraldo do Monte o Quarteto Novo, que apesar de curta existência e apenas um elepê gravado ficaria como um dos mais importantes grupos vocais-instrumentais dos anos 60. Raulzinho teve uma carreira diversificada: tocou em vários grupos, chegou a integrar o RC-7, do cantor Roberto Carlos - afinal é necessário defender o leite das crianças, mas nunca deixou de improvisar, de mostrar, sempre que possível, seu som jazzístico. Tanto é que o pianista Frederich Gulda, numa de suas passagens pelo Brasil, o convidou para acompanhá-lo a Alemanha: xxx Apesar das limitações para o instrumentista gravar no Brasil, Raulzinho chegou a aqui fazer dois elepês: "À vontade mesmo na RCA Victor, com um excelente repertório, produção de Roberto Jorge e Internacional Hot", na extinta Equipe, produção de Osvaldo Cadaxo. Neste segundo, o grupo arregimentado incluía o sax-tenor Oberdan Magalhães (hoje em jogadas comerciais, liderando a Banda Black Rio), o guitarrista Frederico, o pistonista Bill Vogel, entre outros. Um repertório avançadíssimo para a época (1969), com temas do então desconhecido Herbie Hancock ("Cantalope Island") ou o belíssimo "Mercy Mercey" (Joe Zavinew). xxx Era natural que acontecesse: com o amigo Airto (junto com a cantora Flora) já morando nos EUA desde 1967, Raulzinho acabou também procurando a América, onde tantos instrumentistas brasileiros tinham se fixado a partir da eclosão da Bossa Nova, 6 anos antes. E como muitos outros instrumentistas, não foi mole se fixar nos EUA: o "green card", documento indispensável para poder trabalhar regularmente nos EUA, demorou a pintar, houve um período difícil, semelhante aquilo que Guimorvan e Flora já haviam tido. Mas depois as coisas melhoraram: em outubro de 1974, na Fantasy Studios, em Berkeley, Califórnia, Raulzinho gravou o seu primeiro elepê ("Colors", M-9061, inédito no Brasil), produção do amigo Airto e que tinha a participação de nomes como J.J.Johnson e; como solista convidado; o extraordinário saxofonista Cannonbal Adderley (1928-1975). Uma composição do próprio Raul, ali gravada, era uma indireta referência nostálgica aos anos de Curitiba, fazendo serenatas aos búfalos do Passeio Público - no sentido concreto e simbólico: "Water Buffalo". Depois veio "Sweet Lucy", este já feito na Capitol (e aqui editado pela Odeon, há poucos meses), com produção do tecladista George Duke, que agora o acompanha ao Brasil, para o Festival de Jazz, em São Paulo, a partir de segunda. E, realizado, há poucos meses, um terceiro elepê, "Don't Ask My Neighbours", que a Odeon está lançando esta semana no Brasil. Incontáveis, participações em discos de outros instrumentistas, principalmente com Airto, Flóra e mesmo Sérgio Mendes, ampliam a discografia americana de Raulzinho. xxx A mesma descontração de seus anos de músico anônimo no Brasil, falando pouco, com muitas gírias, Raulzinho é a grande presença no Festival de Jazz, em São Paulo, em termos de brasileiros que se consagraram no Exterior. Afinal, Airto e Flóra, por diversas razões, não puderam vir tocar ao lado dos superstars da música jazzística, que estarão na Capital paulista, por sete dias, a partir da próxima semana. Chegando a Curitiba, para rever muitos amigos que aqui tem, incluindo ex-colegas da banda da EOEG, [Raulzinho] é uma espécie de símbolo do músico de real talento que deu certo. Afinal, como ele mesmo diz, "Lá (nos EUA) a gente tem de provar, provar e provar que é bom. O americano só apoia depois que sabe o valor da pessoa. Aí, sim, dá todo o apoio e uma estrutura para trabalhar. É então que começa a falta de tempo, a gente vira uma máquina. Mas para se chegar a esse ponto, é preciso comer muito pão duro, tomar muito cafezinho sem açúcar" .
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
4
09/09/1978

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