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Aramis

Woody Allen, o teorema das emoções

"Não é possível aprisionar os sentimentos profundos". (Marion, personagem de "A Outra"). O teorema parece se completar: há oito anos tínhamos a hipótese com os dados enunciados nos personagens femininos de "Interiores". No ano passado, em seqüência, houve a tese ("Setembro") e atingiu-se, afinal, a síntese - ou a demonstração do raciocínio lógico: "A Outra" (Cine Bristol, 5 sessões, hoje último dia em exibição), é como se fosse o terceiro vértice - e aparentemente conclusivo de um mergulho matemático que Woody Allen, 53 anos, faz nos sentimentos humanos. Numa linguagem teórica, pode-se repetir que dado um teorema - direto - seu recíproco é o teorema cuja hipótese é a tese do outro e vice-versa; o contrário, tem por hipótese e tese as negações respectivas. Parece complicado, mas não é! Basta (re)lembrar as imagens de "Interiores", somar-se as de "Setembro" e temos em "Another Woman" a chave para abrir, completamente, as portas da percepção que fazem de Allen o cineasta de maior profundidade (e indagações) do cinema contemporâneo. Não foi sem razão que após concluir "A Outra" - lançado em outubro do ano passado nos Estados Unidos - Allen propôs aos seus produtores Jack Rollins e Charles H. Joffe, um retorno à comédia - do que resultou "New York Stories" (lançado na primeira semana de março último nos EUA), dividindo uma trilogia, sofisticada e com humor, com episódios dirigidos por seus amigos Francis Coppola e Martin Scorcese. xxx Desde sua estréia nos EUA, há 10 meses, os mais notáveis críticos têm insistido em lembrar que dentro da assumida admiração por Ingmar Bergman - inspirador de sua trilogia - Allen alcançou com "A Outra" o seu ponto mais íntimo com o realizador sueco, especialmente em seu denso "Persona" (Quando Duas Mulheres Pecam, 66), no qual Liv Ullman e Bibi Anderson encenam o drama filosófico da enfermeira fascinada pela paciente mentalmente perturbada. Há também quem identifique na Marion, 50 anos, uma professora de filosofia realizada, bem (?) casada com um próspero cardiologista, Ken (Ian Holm) - mas que de repente sente seu (aparente) universo ter autoquestionamentos, semelhanças com a Dra. Isaksson (Liv Ullman), personagem de outro filme bergmaniano: "Face a Face" (Ankiket Mot an Ansikteg, 76). Honestamente, Allen sempre colocou Bergman e Fellini como suas maiores influências - apesar de ter desenvolvido uma carreira aparentemente de comediante (inicialmente escrevendo programas para TV; depois com filmes leves). Entretanto, quem saber ver as coisas com maior profundidade, sempre percebeu a profundidade de seus personagens e temáticas, mesmo em suas primeiras experiências como diretor ("Um Assaltante bem Trapalhão", 69; "Bananas", 71). Uma visão do existencialismo de seus personagens, em especial em "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" (Annie Hall, 77) - que lhe valeu o Oscar (que não foi receber), representou um ponto de ruptura maior - a tal ponto que uma professora curitibana, Denise Araújo, 42 anos, trabalha há dois anos numa tese sobre "A Carnavalização na Obra de Allen", concentrando sua tese em "Annie Hall" (detalhes a respeito, na coluna de sexta-feira). xxx É difícil reduzir num review um filme da dimensão de "A Outra", sem fazer estas citações aparentemente pernósticas e pretensiosas. Afinal, em "Another Woman", não estamos defronte apenas de um filme-entretenimento, mas sim de uma obra de tese - embora narrada com a leveza e sinceridade de um cineasta seguro (mas aqui sem qualquer momento de humor), sintetizando ao máximo a ação (tanto é que a sua duração é apenas 70 minutos). Marion (Gena Rowlands, numa interpretação maravilhosa), protege-se "do torvelinho das emoções numa redoma de arte e cultura" - como definiu o crítico Ely Azeredo. O primeiro casamento afundou em conseqüência de sua decisão unilateral de aborto. O segundo, com Ken, foi uma opção por uma vida sem as turbulências passionais acenadas por outro admirador, Larry (Gene Hackman), escritor que volta a reencontrá-la. Ao tirar uma licença para escrever um novo livro, aluga um apartamento no centro de Nova Iorque. E ali, por uma falha do sistema de aquecimento, passa a ouvir as confidências de clientes de um psiquiatra vizinho: na primeira seqüência, um hetero que se sentiu atraído por um tal de Giles, e depois a voz sofrida de Hope (Mia Farrow), que a cativa em seu desespero e desperta suas próprias lembranças. As sessões no consultório ao lado tornam-se numa obsessão para Marion, que sai em busca dessa voz misteriosa. Numa primeira tentativa de encontrá-la nas ruas, acaba revendo uma amiga de juventude, Claire (Sandy Dennis), que a acusa pela perda de um namorado há muitos anos. O encontro com Hope (que significa Esperança) é num misto de antiquário-galeria de arte, ao fundo de uma reprodução do quadro "A Esperança" do pintor Franz Joseph Kline (1919-1962) - ponto de partida para que Marion tente uma aproximação com a insegura Hope. Funcionando como "A Outra", numa consciência adormecida de seus próprios dramas congelados (aparentemente) - Hope faz com que Marion reveja sua relação com o marido pedante; a filha do primeiro casamento dele, Laura (Martha Plimpton); seu pai esclerosado (John Houseman), seu irmão fracassado (Harris Yulin), a amiga da juventude Claire e do escritor Larry, apaixonado por ela, que nas vésperas de sua união com Ken, declarou seu amor. Marion, uma mulher culta, aparentemente firme em suas decisões, admite que driblou a crise dos 30 anos, resistiu a dos 40, soçobra, entretanto, na dos 50. E começa, então, o que pode ser apropriadamente definido como uma viagem de auto-descoberta. Sofrida e que mergulha em flashbacks e mesmo sonhos - como uma seqüência digna de Fellini (em "Oito e Meio"), na qual, numa espécie de peça de teatro, cujo elenco é formado pelas pessoas que fazem (ou fizeram) parte de sua vida. xxx Ao contrário de "Setembro" - cuja extrema sensibilidade parece não ter sido entendida por parte da crítica - "Another Woman" é o trabalho de um Allen maduro, como opinou Richard Schikel ("Time"). Seu colega David Ansen ("Newsweek") afirmou que esta realização é um passo adiante na carreira de Allen. "A fita é autoconscientemente literária e seus temas são ordenados de maneira tão esquemática, que a audiência pode antecipar exatamente até onde vão chegar. Mas ainda assim, o filme tem uma urgência emocional que mantém as pessoas ligadas na tela. Você tem a sensação de que Allen está expondo alguns terminais nervosos desta vez e de que não está apenas se escondendo atrás da arte". xxx A história é basicamente simples, ainda que psicologicamente complexa. "A Outra" se insere naquela categoria de filmes-tese, repleta de informações/propostas para múltiplas interpretações. Cada momento nos diálogos dos personagens - a narrativa de Marion, os flashbacks e as questões levantadas permitem um desenvolvimento do raciocínio - tendo, na frase final ("A lembrança é algo que se toma ou se perde"), a dimensão de todo um verdadeiro ensaio visual - para ser (re)visto e discutido o máximo de vezes - como aliás, os dois outros vértices deste triângulo ("Interiores" e "Setembro"), infelizmente ainda não lançados em vídeo - o que facilitaria suas revisões. xxx Para uma obra tão densamente bergmaniana, Allen substituiu seu fotógrafo habitual (Gordon Wills) pelo sueco Sven Nykvist, o favorito de Bergman, que "produziu uma paleta cromática sobre nuanças do marrom" - na correta definição de Azeredo. Um filme destinado a platéias especiais, capazes de entender e se emocionar com uma obra de primeira categoria, na qual Allen leva a todos (nós) ao choque do tempo mal investido, às vertigens do vazio interior. "A Outra" é uma obra prima que, infelizmente, terá hoje suas últimas 5 exibições em Curitiba. E isto se houver público suficiente. LEGENDA FOTO - "A Outra": uma viagem no auto-conhecimento de uma mulher em crise (Marion/Gena Rowlands, em cena com Sam/Philip Bosco), complementa um teorema de Woody Allen em torno de sentimentos humanos. Hoje, último dia de exibição no Cine Bristol.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
23/08/1989

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