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Aramis

Woody e as inquietações que rindo fazem pensar

"Um filme não é nunca um relatório sobre a vida. Um filme é um sonho. Um sonho pode ser vulgar, trivial e informe; é talvez um pesadelo. Mas um sonho não é nunca uma mentira." (Orson Welles, 1915-1985) A cada ano que passa - e isto acontece regularmente desde 1975 - Woody Allen propõe não apenas sonhos & sorrisos de uma sessão cinematográfica. Sem chegar à pretensão de documentarista do inconsciente na empatia de suas imagens & personagens, este judeu nova-iorquino faz com que, cada vez mais, uma obra construída aparentemente na forma do humor contemporâneo se aprofunde na alma & sentimentos de toda uma geração que com ele convive visual e sentimentalmente. "Hannah e suas Irmãs" (cine Plaza, 5 sessões) não é apenas (mais) uma obra-prima em sua carreira, destaque entre os 10 melhores filmes do ano e, se a calhordice da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood não impedir (e que o castiga há 9 anos, por ter se recusado a ir buscar o Oscar que ganhou por "Annie Hall", em 1977) deverá estar entre os filmes com maior número de nominations em fevereiro próximo. "Hannah e suas Irmãs" é mais um profundo, maravilhoso e seríssimo mergulho que a câmera de Allen faz na solidão e perplexidade de homens e mulheres conseguindo transpor de sua Nova Iorque um mundo-empatia para qualquer outra parte em que sentimentos, paixões, angústias e dúvidas assaltem o ser humano - e o façam, justamente pela sua perplexidade, por diferenciar-se dos (outros) animais. Cinematograficamente, poderia-se dizer que "Hannah and her sisters" é o mais conciso e bem realizado dos filmes de Woody Allen. Mas isto é pouco e injusto, pois cada uma de suas obras tem aquela característica de cinema de autor (e não é sem razão que trabalha no mais absoluto sigilo, proibindo qualquer estranho nos sets e fazendo mesmo os atores e atrizes desconhecerem o roteiro completo do filme). Obra múltipla, propositalmente aberta a diferentes leituras conforme a sensibilidade e o QI de cada espectador, "Hannah e suas Irmãs" pode ser visto como uma simples comédia, com gags (como sempre) inteligentes (afinal, nos anos 50/60, Allen era roteirista dos melhores programas humorísticos de televisão em Nova Iorque) até aquela obra de confronto, na qual como um Ingmar Bergman sem neuroses cinzentas usa a câmera como um bisturi-divã para chegar ao mais fundo da alma dos espectadores. Não é sem razão que desde as primeiras projeções de "Hannah e suas Irmãs" que muitos críticos estabeleceram comparações com "Interiores" (Interiors, 1978), até hoje a proposta mais séria (e pretenciosa, segundo alguns) de Allen mostrar a sua visão como cineasta de sentimentos. Declaradamente inspirado em Bergman, Allen fazia em "Interiores" a crônica de uma família em crise, dilacerada com dramas interiores, separando irmãs - e a visão dramática de um velho casal, Arthur (E.G. Marshal) e Eve (Geraldine Page), divorciados após anos de difícil convivência. Excluindo-se como ator, Allen levou "Interiores" às últimas conseqüências de obra dramática, no que contribui a perfeita fotografia de Gordon Willis. Em "Hannah e suas Irmãs", sem chegar a tal rigor, Allen também não deixa de trazer imagens que cortam como navalha ao localizar as brigas, pequenas traições e inverno dos sentimentos do velho casal (interpretados por Lloyd Nollan/Maureen O'Sullivan). Só uma das seqüências - quando Hannah visita os pais, asfixiados numa crise - e em poucas imagens (as fotos da juventude, a decadência trazida pela idade etc.) se transmite todo um clima dramático, imediatamente associado ao universo dos "Interiores", de oito anos passados. Cada personagem de "Hannah e suas Irmãs" é extremamente bem construído, significativo de toda uma empatia que busca aquela identidade maior junto ao espectador e que, no ano passado, fazia mesmo o humor surrealista de "A Rosa Púrpura do Cairo" atingir, melancolicamente, toda uma dimensão humana. Sem jamais deixar de ser o poeta visual de sua Nova Iorque - as livrarias, as lojas-de-disco, o Central Park, a arquitetura de edifícios belíssimos (e que raramente são devidamente observados), Allen transpõe nos diálogos, no humor corrosivo (e quase cruel) de seu próprio personagem, em suas neuroses e angústias, todas as inquietações que o homem faz ao entender a temporalidade da vida e a necessidade de encontrrar um sentido para estar aqui e agora. Do tchecoviniano Boris Brushenko em 1975 aos personagens urbanos Alvy Singer ("Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", 1977), Isaac Davis ("Manhattan", 1980), Sandy Bates ("Stardust Memories/Memórias", 1980), Andrew ("Sonhos Eróticos de Uma Noite de Verão/ A Midsummer Night's Sex Comedy", 82) e Danny Rose ("Broadway Danny Rose", 84), reencontramos sempre o homem perplexo, buscando aquele psicológico desejo de aceitação - caricatura, aliás, de outro personagem-filme de Allen, o Leonard ("Zellig", 1983). É preciso, enfim, (re)ver sempre Allen numa galeria extensa de personagens-inquietações, que, disfarçando sua seriedade num humor que ele próprio define como "judeu, novaiorquino e contemporâneo" faz com que se tenha em seus filmes o mais importante depoimento destas duas últimas de angústias, dúvidas e indagações. Mesmo quando trabalhando apenas como ator, de sua estréia em "O que é que há, gatinha?" (1964, de Clive Donner), ao político personagem Howard Prince, perseguido pelo macarthismo em "Testa de Ferro Por Acaso" (The Front, 1976, de Martin Ritt) - Allen jamais deixou de interferir profundamente, resgatando (e auxiliando assim os diretores) detalhes dos filmes em que participou como intérprete. Assim, ao trabalhar com a liberdade que seus fiéis produtores (Jack Rollins/Charles H. Joffe) lhes porporcionam, Allen não faz concessões. E justamente sendo extremamente pessoal e regional em seus projetos, consegue ser universal - e, de filme para filme, subir no ranking dos cineastas que, em si, atraem num público fiel, inteligente e capaz de absorver, mesmo que com leituras diferentes, os seus filmes. Tudo é admirável em "Hannah e suas Irmãs". O roteiro preciso, a forma com que a história é contada, a utilização de legendas como no próprio cinema mudo, o esplêndido elenco reunido, a fotografia inspirada no italiano Carlo Di Palma (substituindo a Gordon Willis) e, especialmente a trilha sonora (ver texto abaixo). O Mickey que Allen cria é mais um personagem clássico em sua filmografia que, dentro de suas dúvidas e inquietações existenciais, funciona como o sempre presente alter ego crítico e humano - em contradição às mulheres e homens deste universo. Para o personagem Elliot - dividido entre a esposa (Hannah) e a cunhada, Lee (Barbara Hershey), o ator inglês Michael Caine não é sem razão uma semicaricatura do mais humano dos personagens que ele mesmo interpretou, há 20 anos ("Alfie"/Como Conquistar as Mulheres, 66, de Lewis Gilbert). Na personagem título, Mia Farrow, esposa e musa de Allen há 6 anos-filmes (substituindo Diane Keaton da fase anterior) é perfeita - como também Carrie Fisher (April), Daniel Stern (Dusty), Diane Wiest (Holly) e, especialmente, o alemão Max Von Sydow no caricato Frederick, o nazistóide marido de Lee. "Hannah e suas irmãs" é daqueles filmes-magia, que sem buscar o escapismo, sem ser o sonho descrito por Welles, nunca é mentiroso. Ao contrário, a verdade de cada sentimento faz de Allen um cineasta tão forte e vigoroso, nesta época, como Welles foi na sua. LEGENDA FOTO - Mia Farrow é Hannah, a personagem-equilíbrio de um filme fascinante. Em exibição no Cine Plaza.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
15/10/1986

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