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Aramis

Um México rebelde no filme de Saura

Em alguns momentos, a sensação é de que se está vendo um documentário didático sobre o México. Ante a riqueza de imagens da revolução, a narrativa que é feita à escritora Anna (Hanna Schygulla) sobre os sucessivos governos militares, até o final dos anos 20, e a linguagem extremamente clara, o espectador se surpreende com esse Saura diferente do fabulário e alegórico contador de parábolas que, nos anos duros da ditadura franquista, conseguia fazer passar um cinema renovador/contestador na Espanha. Ou diverso daquele cineasta mágico e que, rompendo estruturas convencionais, recontou na liberdade da dança, forma e cores as estórias de "Bodas de Sangue" e "Carmen" dois dos momentos mais bem sucedidos do cinema contemporâneo. Entretanto, isso é apenas uma impressão momentânea. A narrativa quebrada do presente (a investigação de uma escritora sobre mulheres que se suicidaram no século XX) e a viagem ao tempo (a infância e juventude de Antonieta Rivas Mercado (1900-1931) nos remetem ao sempre inquieto/criativo Carlos Saura, fazendo desse "Antonieta", realizado em 1982, um intermezzo numa obra tão admiravelmente pessoal e ao mesmo tempo comunicativa. Deixando o mundo fechado de sua Espanha torturada nas memórias familiares ("Ana e os Lobos", "Cria Cuervos", "Mamãe Faz Cem Anos" etc...). Saura leva a câmara do excelente Teo Escamilla para trazer imagens fascinantes da Cidade do México e, embora rapidamente, também a visão sempre bela da Notre Dame de Paris. Mistura passado e presente para, contando a estória de uma jovem e bela mexicana, filha de um famoso arquiteto mexicano, também colocar todo um México revolucionário que embora revisto já inúmeras vezes de um jornalístico John Reed ("México Rebelde", 1913) ao genial Eisensntein ("Que Viva México", 1931/32) continua a oferecer elementos tão ricos para interpretações sócio-político-econômicas. Justamente a amplidão com que Carlos Saura tratou do México é que faz de "Antonieta" (Cine Ritz, ainda hoje, 5 sessões) um filme tão fascinante, emotivo e político. E preciso entender todo um processo revolucionário, em suas contradições tão grandes, como é o México, para melhor absorver sentir a importância desse filme que tem provocado reações contraditórias. O público convencionalmente apreciador do outro Saura, recebe "Antonieta" com decepção. Entretanto, para quem interessa entender não apenas uma estória individualista, mas, também, todo um contexto, eis um momento especial de cinema. Tal como os grandes muralistas (Rivera, Siqueiros, Orozco), Saura enche os olhos do espectador com inúmeros informações sobre o México revolucionário, da longa ditadura (35 anos) de Porfirio Diaz, às revoluções de Madero, Pancho Vila, Emiliano Zapata, Huerta. Obregon e tantos outros generais, que, sempre falando em nome do se sucederam no poder. Do romance de Andres Henestrosa, o roteirista Jean Claude Carriere (que pelos sons de convivência com Luis Bunuel se tornou um intelectual capaz de entender os sentimentos mexicanos) produziu um roteiro perfeito, fazendo as colocações de personagens detalhados e fixados. A linguagem investigativa em torno de quem foi Antonieta, como acontecia, há 45 anos passados, no clássico "Cidadão Kanc", de Orson Welles (e que posteriormente foi repetida tantas vezes), permite a alternância de imagens e um ritmo dinâmico. A fantasia e liberdade artística em deslocar a personagem contemporânea (a escritora) para intervir na personagem da investigação (Antonieta) rompe compadrões tradicionais daquilo que seria apenas uma linguagem convencional. Antonieta - magnífica atuação da bela Isabele Adjani é a grande personagem do filme: filha de um célebre arquiteto (a quem Porfírio confiouo projeto do Monumento da Independência) era atraída, por sua vez, pela arte, pela cultura e pela Europa, vivendo num México que na época (1910/l929) se autodestruia. O roteirista Carrieré explica, a propósito: "Vem dai a grande confusão e, sem dúvida, o suicídio, pois, finalmente, sua vida se fundou em 3 erros: cultural, quando em pleno caos mexicano, ela consagra sua energia e fortuna, introduzindo a cultura européia; político, com a aventura com José Vasconcelos candidato liberal a presidência do México; sentimental, enfim,através de sua paixao pelo pintor Lozano, homossexual, e, em seguida, Vasconcelos, político casado, vencido, depois expatriado para Paris, onde ela vai ao seu encontro para morrer arrancada de suas raízes". Aos 31 anos, Antonieta se suicidou: no interior da catedral de Notre Dame, em Paris. Partindo da investigação deste fato, uma escritora (interpretação perfeita embora fria da alemã Hanna Schulla) é o fio condutor de um filme inquietante e repleto de simbolismos. For exemplo, ao suicidar-se com um tiro no coração a mexicana Antonieta reproduz o sacrifício mais antigo: o dos Aztecas, que arrancavam o coração das vítimas sobre o altar sagrado para que o Sol continuasse a iluminar o mundo. A idéia de que Cocteau e Satie invocados na alienação intelectual de Antonieta e seu grupo tivessem alguma importância no momento cultural que o México atravessa é tão esdrúxula quanto o episódio da campanha eleitoral, quando o candidato José Vasconcelos dá um exemplar da "Divina Comédia" a um camponês analfabeto. A sua maneira, "Antonieta" é um filme violento: do prólogo, com as imagens do vídeo, em que uma prosaica teleapresentadora de um programa de receitas culinárias encerra a audição dando um tiro no ouvido, a morte de Antonieta na catedral de Notre Dame há um ciclo de destruição humana mas tudo dentro de um prisma de impotência política quando de uma utopia intelectual. Ao propor imagens como estas, Saura continua a ser tão inquieta e contestador como conseguia fazer há 20 anos, driblando os censores franquistas. E fazendo o espectador sair do cinemas com imagens fones na cabeça, deglutindo suas propostas e intenções. O que é cinema de idéias e ação. LEGENDA FOTO 1: Isabelle Adjani e Carlos Bracho em "Antonieta": ainda hoje, no Cine Ritz. LEGENDA FOTO 2: Hanna Schygula: a investigação em "Antonieta".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
7
28/08/1985

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