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A "Guerra dos Meninos" que denuncia trágica realidade

A vereadora Nely Almeida (PSDB) emocionou-se tanto ao assistir "A Guerra dos Meninos", que na sexta-feira, 6, telefonou a sua realizadora, Sandra Werneck, consultando sobre a possibilidade de ser feita uma exibição deste documentário no plenário da Câmara de Curitiba em outubro próximo, quando das discussões em torno do problema do menor - e já estiver definido o Conselho Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente. O vereador Horácio Rodrigues (PL), presidente da casa - que também viu uma parte do vídeo - apoiou a idéia, entendendo a importância deste documentário de 52 minutos que já tem exibições asseguradas em mais de 10 países - e que concorrendo no 19º Festival de Gramado do Cinema Brasileiro (5 a 10 de agosto) recebeu os Kikitos de melhor curta e melhor direção. xxx A primeira cena mostra um garoto de 12 anos fabricando caixões em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. A última seqüência focaliza um grupo de meninos de rua representando uma execução em que as armas se transformam magicamente em sorvete. Entre estes dois pontos, Sandra Werneck, uma carioca de 40 anos completados no último dia 5 de maio, realizou um dos mais profundos, sinceros e corajosos documentários brasileiros. Com toda razão, na sessão em que "A Guerra dos Meninos" foi projetada no auditório Lupiscinio Rodrigues no Serrano Centro de Convenções, em Gramado, muitos espectadores saíram com lágrimas nos olhos. A emoção atingiu também aos membros do júri (do qual fizemos parte), que mesmo considerando a importância de outros média-metragens em competição (*), foram unânimes: pela sua atualidade e importância, "A Guerra dos Meninos" merecia os dois prêmios na categoria de média-metragem. Para falar neste documentário que só foi possível ser realizado graças a ajuda da Unicef, e, especialmente, da Kinderpostegels, uma fundação holandesa de proteção à criança (que se uniram e doaram US$ 35 mil para a produção, cerca de 30% do orçamento do filme), temos que repetir aquela definição, que já utilizamos algumas vezes: CINEMA DE UTILIDADE PÚBLICA. Realmente, uma cineasta que vem construindo uma obra da maior consciência político-estética como Sandra Werneck, não poderia ter escolhido um assunto mais atual e necessário de ser discutido com todas as letras e imagens. Coincidentemente, no domingo, 4 de agosto, que aconteceu a abertura do Festival de Gramado, "O Estado de São Paulo" dedicou duas páginas a uma belíssima reportagem de Roldão Arruda, jornalista londrinense, com a manchete "Violência liquidou em julho 30 menores nas ruas de São Paulo". A realidade terrível, da verdadeira guerra que diariamente acontece em dezenas de cidades brasileiras contra a infância e adolescência desprotegida, fez com que o livro-reportagem de Gilberto Dimenstein, 33 anos, da sucursal da "Folha de São Paulo" em Brasília, publicado há três anos pela Brasiliense (Cr$ 2.500,00), se transformasse numa obra de maior impacto. Quando Sandra leu o livro, imediatamente decidiu que a denúncia ali feita merecia ganhar uma forma ainda mais ampla de ser levada "ao maior número possível de pessoas", conforme nos disse em Gramado. - "Mesmo com o livro de Dimenstein alcançando os primeiros lugares nas listas dos mais vendidos, sabemos que é ainda uma minoria que lê no Brasil. A televisão, mesmo quando denuncia a violência contra os menores, o faz de forma sintética, sem aprofundar. Portanto, senti que tinha a obrigação de fazer este filme". Cineasta que sempre trabalhou com temas sociais - em "Bom Dia, Brasil", 1976, em sua estréia, acompanhava a trajetória de um nordestino na grande cidade, seguindo-se "Rito de Passagem" (1980), para, em 1984, realizar um contundente estudo sobre as internas do Instituto Penal Talavera Bruce, em "Pena Prisão". Em 1987, após um média em que discutiu a indústria e consumismo cultural ("Geléia Geral", 1986), Sandra abordava a prostituição infantil em "Damas da Noite". Portanto, o livro de Gilberto Dimenstein não poderia encontrar uma realizadora mais identificada às suas preocupações. Relata Sandra: - "Em setembro e outubro do ano passado, com uma equipe de 12 pessoas, percorri favelas e comunidades da Baixada Fluminense e da Zona Sul, e a Cinelândia, além de comunidades pobres de Recife e São Paulo". Na roteirização, Sandra teve ajuda de Maria Clara Morais e posteriormente uma de suas consultoras foi Ana Filgueiras, coordenadora do Centro Brasileiro de Defesa da Criança e do Adolescente. Corajosamente, Sandra enfrentou barras pesadíssimas para dar o máximo de realismo ao seu filme. Em Nova Iguaçu, visitou uma fábrica de caixões e um cemitério de indigentes. Em Duque de Caxias, entrevistou o coordenador regional do Movimento Nacional de Meninos de Rua, Valmor Nascimento, que sofreu diversas ameaças de morte e um seqüestro para tentar desmoralizá-lo. Em Caxias, entrevistou também a promotora Maria Salles Moreira e ali conheceu uma menina de 15 anos que estava jurada de morte por ter presenciado o assassinato do namorado e um garoto de 16 anos, gerente de uma boca de fumo. Em São Paulo, onde a produção executiva teve o apoio da experiente Assunção Hernandez, Sandra conseguiu entrevistar um matador profissional que está preso em Taubaté acusado de mais de 70 homicídios. Em Diadema, ouviu uma mãe contar o assassinato de seus três filhos, em maio de 1990. - "Em muitos momentos, fui filmar somente com o fotógrafo Guy Gonçalves, sendo levada vendada e sob pistolas e metralhadoras. Não poderia haver maior realismo". Deste material - quase 8 horas de filmagens em 50 latas de 10 minutos cada - Sandra montou um documentário enxuto, perfeito e emocionante de 52 minutos, que lançado em junho no Cineclube Estação Botafogo (Rua Voluntários da Pátria, Rio de Janeiro), ficou quatro semanas em cartaz, com sessões franqueadas aos próprios meninos de rua - muitos dos quais apareciam na tela. Levado em abril ao Mercado Internacional de Programas para Televisão (MIP), em Cannes, foi comprado por vários países - incluindo a Inglaterra, Holanda, Canadá, Japão, EUA e Noruega. Dois dias antes de chegar a Gramado, Sandra teve confirmação de que seu filme foi aceito para participar dos festivais de San Sebastian (Espanha, setembro) e Chicago. - "Fiquei feliz mas não sei se poderei ir. Afinal, até hoje não tive o menor auxílio do Governo. Antes, pelo contrário..." - diz, lamentando que no XXIV Festival do Cinema Brasileiro de Brasília (3 a 10 de julho), seu filme foi misteriosamente vetado pela comissão de seleção. As mais diferentes instituições ligadas ao problema social - especialmente das questões das crianças - tem procurado Sandra para promover sessões deste filme, que em circuito comercial dificilmente será exibido. Ligada familiarmente ao Paraná - aqui reside uma das suas tias, Sandra mostra-se disposta a vir especialmente para algumas sessões em que seu filme seja debatido, prometendo, inclusive, empenhar-se para que o jornalista Gilberto Dimenstein - "uma pessoa admirável, que abriu mão de qualquer exigência autoral e tem dado a maior força" - a acompanhe. Para isto, basta que a Câmara de Curitiba (e por que não a Secretaria da Criança, que Fani Lerner dirige com tanta dedicação?) ofereçam as mínimas condições. A visão das imagens de "A Guerra dos Meninos" vale por mil discursos e não há quem não se conscientize em torno desta questão, ao ver o problema - com visão jornalística e imparcial que Sandra faz deste que é um dos mais terríveis e angustiantes dramas de nossos dias. Nota (*) "Isto é Noel", média-metragem de Roberto Sganzerla sobre Noel Rosa (1910-1937), "O Vôo Solitário" (Der Einsanme Flug), de Ewerson Foganello e "Nosso Amigo Radamés Gnatalli", de Moisés Kendler e Aluísio Didier (RJ) foram os outros concorrentes. O documentário sobre Gnatalli, a exemplo do que ocorreu no Festival de Brasília, mereceu o prêmio especial do júri. LEGENDA FOTO 1 - Sandra Werneck, no encerramento do 19º Festival de Gramado do Cinema Brasileiro, recebendo os dois merecidos Kikitos pelo seu atualíssimo documentário "A Guerra dos Meninos" (foto Tiomkim). LEGENDA FOTO 2 - Filmado no Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, "A Guerra dos Meninos" é o mais contundente documentário sobre a violência praticada diariamente contra as crianças e adolescentes.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
08/09/1991

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