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Aramis

O filme certo do black Lee

"Todo americano negro já se defrontou com o racismo. Pode não ser todo dia. É a mesma coisa que dizer "este cara é azul". Quando você vive lá, na América, você cresce com isso. É claro que agora não há mais os restaurantes ou toaletes separados, para brancos e negros. Nós fizemos o filme para mostrar que, mesmo assim, o racismo continua". (Spike Lee, diretor de "Faça a Coisa Certa"). O assunto é tão quente e inflamável como o próprio dia em que se passa a ação de "Do The Right Thing": a questão racial. Desde que David W. Griffith (1875-1948) realizou, há 85 anos, o "Nascimento de uma Nação" - acusado de ser um clássico racista - que a separação entre negros e brancos tem sido abordada, com maior ou menor intensidade, pelo cinema americano. Mesmo quando há visões supostamente liberais - como de Richard Brooks ("Sementes da Violência", 54 ou "Sangue Sobre a Terra", 57) a Alan Parker ("Mississipi em Chamas", 1988), há protestos e discussões a respeito. Basicamente realizados por negros, são raros os filmes. Gordon Parks, 78 anos, foi o primeiro negro a dirigir um filme em Hollywood, o que só aconteceu há 20 anos, em "Com a Morte na Alma" (The Learning Tree). Portanto, seria mais do que natural que Spike Lee, jovem negro e inquieto, viesse a se tornar uma sensação ao chegar a direção nos anos 80 com uma abordagem livre de temas atuais. Seu primeiro filme, o sensual "She's Gotta Have It", que custou US$ 175 mil (uma ninharia em termos de orçamentos cinematográficos americanos), foi elogiadíssimo em festivais de vários países (no Brasil, esteve em mostra paralela do IV FestRio, quando Lee veio ao Rio de Janeiro) mas até hoje não chegou nem em vídeo. O segundo, o musical "School Daze", custou US$ 2,5 milhões mas foi boicotado pela Columbia e fracassou mesmo nos Estados Unidos. Em compensação, o terceiro, "Do The Right Thing", que custou US$ 6,5 milhões, desde sua pré-estréia mundial no festival de Cannes no ano passado - e lançado nos Estados Unidos e Canadá em 30 de junho - embora dividindo a crítica e público, é um sucesso. Em Cannes - onde a outra sensação foi "Sexo, mentiras e videotapes" (estréia no Ritz, em março) ganhou premiações - "Do The Right Thing" só não levou a Palma de Ouro porque o presidente do júri, o alemão Wim Wenders ("Paris Texas") se acovardou e temeu que um filme com assunto tão explosivo saísse galardoado do mais importante festival de cinema do mundo. João Luiz Albuquerque, que havia se tornado amigo de Lee quando este veio ao FestRio, e Pepe Escobar, d'"O Estado de São Paulo", foram dos primeiros jornalistas a darem a Spike um espaço que só posteriormente a chamada grande imprensa internacional (inclusive as revistas especializadas em cinema) começou a dispensar a este novo cineasta. Conta Joãozinho Albuquerque, assessor de imprensa do FestRio, que Spike mora no Brooklyn, Nova York, onde está a sede de sua produtora - Forty Acresand Mule. Odeia TV (só admite esportes) e pensa em vir ao Brasil novamente, para conhecer a Bahia. O filme é fascinante e simples. Passa-se todo num dia de verão com o calor de 40º graus. Abre com D. J. Da WE-Love FM, Mister Senior Love Daddy, iniciando a programação do dia - toda incrementada com uma trilha sonora esplêndida, entre o pop do grupo Public Enemy a jazzísticos solos de Brandford Marsalis (estes, infelizmente, ausentes da trilha sonora em disco, editada no Brasil pela Motown/BMG). Num universo de poucos quarteirões, se passa a história, com Lee mostrando, com graça, originalidade e objetividade os personagens sobre os quais irá construir a história. Como faz há 20 anos, no meio do Bed-Stury, uma área do Brooklyn, de população negra, o italiano Sal (Danny Ayello) e seus filhos, Pino (John Turturro) e Vito (Richard Edson) abre sua pizzaria. Mookie (Spike Lee), o entregador de pizza, quer trabalhar o menos possível. Da Mayor (Ossie Davis), um pretão etílico, filosofa com os vizinhos. Mother Sister (Ruby Dee, veterana atriz e cantora) é uma velha dama irônica. Radio Rahelm (Bill Nunn), carregando seu imenso rádio-gravador, acaba sensibilizando-se com a idéia que Buggin'Out (Giancarlo Esposito) propõe em represália ao fato de Sal só ter fotos de ítalos-americanos brancos nas paredes de seu restaurante frequentados quase que exclusivamente por negros: um grande boicote. Uma proposta que acaba explodindo ao final, em uma seqüência que lembra outro recente filme sobre questões raciais - "Sammy and Rosie Get Laid" (87, de Stephen Frears, ainda inédito nos circuitos, mas a disposição em vídeo), abordando conflitos raciais de ingleses e paquistaneses nas ruas de Londres. Entre tantos aspectos admiráveis de "Faça a Coisa Certa" se destaca o fato de Spike Lee não assumir posições maniqueístas, pré-concebidas, deixando os conflitos raciais saltarem livremente. Assim não apenas o negro, mas o italiano (Sal e seus filhos), os porto-riquenhos (Tina/Rose Perez, amante de Moonkie) e brancos entram numa ciranda de conflitos, conduzidos num ritmo quase de ballet - como aliás, já propõe a bamboleonistica abertura com a mezzo chicana, mezzo black, Rosie Perez dançando ao som do Public Enemy. Ao final, Martin Luther King (1929-1968) e Malcom X (Malcolm Little, 1925-1965), líderes das lutas pelos negros - o primeiro, à forma Gandhi, pela não violência, o segundo, na luta pesada contra a discriminação - ambos assassinados em suas pregações, são mais do que simples referências na fotografia: Lee captou trechos de orações que passam para o espectador a reflexão sobre o filme que acabam de assistir, numa fórmula aberta e inteligente. Explicando as duas citações, Spike Lee disse: "Para mim elas colocam o ponto final de exclamação no filme e demonstram que as duas atitudes estão interligadas, ainda que pareçam contraditórias". Faça a coisa certa nesta semana: Não deixe de assistir ao filme de Spike Lee. Pense e discuta-o. Um programa de verão/reflexão. LEGENDA FOTO - Spike Lee e Ossie Davis - o "Da Mayor" - em "Faça a Coisa Certa": o melhor filme contemporâneo sobre racismo. Em exibição no Condor.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
8
10/02/1990

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