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Aramis

O mágico (post "Oz") da América

"O mundo todo é selvagem no coração e estranho na superfície" (Lula, personagem feminina de "Coração Selvagem"). xxx O curitibano Walton S. Wysocki, double de artista plástico obcecado por imagens eqüestres e cinéfilo-glutão, costuma fazer seus desenhos com maçaricos, extraindo cores e imagens com chamas & fumaça. Walton, como um apaixonado por cinema e um esteta dos músculos em seus cavalos pictóricos, deve ter adorado "Coração Selvagem" (Cine Ritz, 2ª semana). Fogo & gelo. "Fire and Coll" - mais precisamente, seria uma forma de definir este universo granguinolesco de David Lynch, 44 anos, americano de Missoula, Montana, eleito cineasta cult a partir de "Veludo Azul" (Blue Velvet, 1986), seu terceiro longa-metragem. Premiado com o Leão de Ouro-90, polêmico e, principalmente, tendo ganho espaço imenso nas maiores publicações dos países em que foi lançado, "Wild at Heart" não é fácil de chegar ao espectador mais convencional - que, assim como acontecia em relação a "Blue Velvet" pode até torcer o nariz e indagar: "mas é "isto" que ganhou a Palma de Ouro?" "Isto" pode ser reduzido, num juízo mais primata, apenas a um thrilling de violência em que marginais perseguem um ex-condenado porque a mãe da mocinha que está com ele, não gosta do candidato a genro. Entretanto, o roteiro em si - extraído de um romance de Barry Gifford (que logo deve aparecer em tradução no Brasil), é apenas o trampolim para Lynch repetir o que já havia feito em "Veludo Azul": cinicamente narrar uma fábula americana de pesadelo, com personagens doentios e frágeis. Para tanto - e vai mais uma ironia - remete a signos & citações a um dos mais conhecidos contos de fada do sonho americano dos anos 30: "O Mágico de Oz", de Frank Baum (1856-1919), escrito em 1990 e que, ao ser filmado trinta e nove anos depois por Victor Fleming (1883-1949), foi não só catapulta para consagrar Judy Garland (1922-1969) como a grande estrela dos musicais da MGM como é, há 52 anos, um referencial indispensável ao gênero mais onírico e suave do cinema americano - o musical. Outro cineasta, o inglês John Boorman, em 1973, já havia recorrido ao signo do "Wizard of Oz" de uma forma simbólica, num science fiction ("Zardoz") em que há múltiplas interpretações. Lynch também tem como contraposto o filme de Fleming: Marietta Fortune (Diane Ladd, a ex-garotinha dos filmes juvenis de Coppola - "Vidas sem Rumo" e "O Selvagem da Motocicleta") é a bruxa má, mãe de Lula Pace Fortune (Laura Dern, sua filha na vida real). Na primeira seqüência, já contrata um brutamontes negro para assassinar Sailor Ripley (Nicholas Cage), ex-motorista de seu ex-amante, o gangster Marcello Santos, que, pensa ela, teria presenciado o assassinato de seu marido, num incêndio provocado pelo casal adúltero. Lula - uma loira meio imbecilizada mas que morre de amores por Sailor (marinheiro, em inglês), como (fiel?) Penélope, aguarda por duas vezes que ele cumpra suas sentenças - até ter um final feliz, "uma pequena ajuda" de uma fada - como nas melhores estórias da carochinha. Só que tudo é temperado por Lynch com muitas chamas - imagens que abrem e marcam o filme, retirando efeitos chamuscantes até de um close up de cigarros - e violência, ironicamente contrapondo-se ao comportamento gélido, ultra cool, de personagens maldosos - como o terrível Bobby Peru (William Dafoe, com dentes de ouro, irreconhecível desde "Platoon"), o gangster Marcello Santos (J. E. Freeman), o apalermado amante (Harry Dean Staton), entre outros envolvidos na caçada ao casal Sailor-Lula pelas rodovias do Sul dos Estados Unidos. Lula bate o calcanhar nos sapatos, como fazia Dorothy (Judy Garland) em "O Mágico de Oz", na tentativa desesperada de se transportar a uma dimensão menos cruel, para "além do arco-íris" - mas permanece num sórdido motel, recendendo ao seu vômito e perguntando a Sailor se "o mundo todo é selvagem no coração e estranho na superfície", ao qual este Sailor de terra firme, igualmente cool, responde com sua voz anasalada: "Depende de como você interpreta a palavra "estranho". O comportamento do ser humano é muito estranho se você olhar para ele de uma certa maneira... é como as formigas". xxx "Coração Selvagem" é mais ou menos isto. Depende da forma com que se volte o olhar para seus personagens, seus símbolos, sua história. A violência - a cabeça de Bobby Peru explodindo no final, a mão de um caixa de loja arrebentada por um tiro é carregada por um vira-lata, enquanto o mutilado tenta alcançá-lo para procurar alguém que a reimplante - são cenas rápidas, e em outras épocas poderiam chocar mais. Hoje, depois de tudo que se viu (e vê) - com uma guerra como a do Golfo Pérsico, destruindo cidades e milhares de pessoas - transformando-se na programação de maior Ibope nas redes mundiais de televisão - pouca diferença faz uma cabeça a mais ou uma mão decepada. Chega a ser humor negro... Se em seu segundo longa-metragem (o primeiro "Erarhead", 1978, ficou inédito nos circuitos), Lynch fez uma correta adaptação da peça "O Homem Elefante" - já voltado a seres defeituosos, em sua pretensiosa superprodução (que levou Dino de Laurentis a falência), "Duna" (1984), rompia códigos e decepcionava o público habituado às guerras e jornadas nas estrelas - com um cult science fiction de difícil interpretação. Seria ao mergulhar no huis clos do inferno de crimes & pecados de uma pequena cidadezinha americana em "Veludo Azul" que Lynch mostraria o seu lado de "um Norman Rockwell psicopata" - como o chamou o diretor Mel Brooks, comparando-o a um dos mais famosos pintores do "american way of life". Numa das mais lúcidas análises sobre Lynch, de Ivor Davis, no "New York Times" (traduzida pela "Folha de São Paulo", 03/01/1991), há outra citação perfeita para entender o seu cinema: "Ele é o Boswell hollywoodiano da vida das cidadezinhas vistas pelo buraco de fechadura". Talvez por esta sua visão absolutamente pessoal - e cruel - é que teve a consagração (especialmente em termos comerciais) de ser convocado para dirigir uma série televisiva ("Twin Peaks") que teve grande impacto nos EUA no ano passado - e que chegou ao Brasil numa redução de duas horas em vídeo (Warner, a disposição nas locadoras), que, no final, torna-se meio enigmática se não tiver a continuidade - até agora inédita em vídeo (a Globo estaria para lançar a série completa - as três primeiras horas dirigidas por Lynch e mais duas horas dos episódios seguintes). Também voltando-se para o cotidiano urbano americano, na linha de "O Pecado e Todos Nós", "Twin Peaks" foi acompanhado de uma operação de merchandising desde os mais dispensáveis gadgets (chaveiros, bottons, camisetas, etc.) até rosquinhas e tortas de morango - preferidas de um dos personagens da série que, embora com enorme empatia com os americanos, talvez não chegue aos telespectadores brasileiros - afinal supridos em sua dose diária (aceitável?) de bobagens visuais pela competência de nossos próprios fazedores de teleilusões. LEGENDA FOTO - David Lynch, 44, o olhar cínico sobre um conto de fadas às avessas.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
23/01/1991

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