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Aramis

Uma visão corajosa de Brooklyn nos anos 50

Lançado obscuramente, apenas como complemento noturno da programação infantil do Cine Astor (o desenho animado "Bernardo e Bianca na Terra dos Cangurus", 14/16/18 horas), um dos mais interessantes filmes do ano sairá de cartaz amanhã visto por menos de 500 espectadores: "Noites Quentes no Brooklyn". O título - seguindo mais o menos o original, "Last Exit to Brooklyn" - afasta o público refinado, imaginando tratar-se apenas de um filme policial, com muita violência no mais assustador dos bairros novaiorquinos. Realmente, violência existe nos 102 minutos desta produção do alemão Bernd Eiching (que inclui em sua filmografia "História Sem Fim" e "O Nome da Rosa"), mas estamos diante de uma obra profundamente social, densa e que ao ser lançada no ano passado, mereceu entusiástica recepção da crítica, valorizando este filme dirigido pelo alemão Uli Edel, conhecido no Brasil por "Cristiane F...". Cineastas como Stanley Kubrick, Brian de Palma e Walter Hill - além do ator Robert de Niro - estiveram entre os que sonhavam transpor a tela o romance "Last Exit to Brooklyn" de Hubert Selby Júnior, obra polêmica que valeu ao seu autor processos nos EUA e ao chegar na Inglaterra, em 1967, também provocou um escândalo semelhante ao que "O Amante de Lady Chatterly" de D.H. Lawrence (1885-1930) havia motivado 49 anos antes. Como contou o crítico Nicolau Sevcenko, na Inglaterra o livro de Selby Jr. foi considerado tão ofensivo, indecente e pernicioso, que o juiz encarregado do caso invocou uma antiga lei (caída em desuso há muito) - o Ato de Desqualificação Sexual - para impedir que mulheres participassem do júri, "já que ninguém mais respeitaria uma pessoa do sexo feminino que pusesse os olhos naquilo. "Naquilo é um livro que tendo o Brooklyn como cenário, no ano de 1952, traz histórias simultâneas "num fluxo Joyceano" segundo Sevcenko. Justamente por se constituir num amplo painel de um [universo] pobre, sujo e violento no início dos anos 50, tendo a Guerra da Coréia como pano de fundo e abordando conflitos sindicais - envolve personagens comoventes, perdedores da sociedade - embora haja um fio de esperança num final relativamente otimista: o nascimento de uma criança, a festa de batizado e a vitória dos operários na greve da fundição Brickman, que por seis meses esteve paralisada, num estado de guerra com piquetes que diuturnamente mantém barradas suas portas, brandindo pedras e pedaços de paus para os caminhoneiros que tentam entrar ou sair, com apoio da polícia e dos fura-greves. Só no aspecto da abordagem sindical - um tema que o cinema americano tem evitado, apesar de cineastas como Elia Kazan ("Sindicato de Ladrões/ On The Waterfront", 1954) e Martin Ritt ("Norma Era", 1979) terem realizado obras marcantes, "Last Exit to Brooklyn" já seria uma obra corajosa. Uli Edel, trabalhando inteligentemente num livro-desafio extraiu personagens notáveis, com comportamentos sexuais que, há 40 anos passados, chocavam naturalmente muito mais do que em nossa permissiva sociedade contemporânea. Assim "Tralala" (Jennifer Jason-Leight, uma revelação fascinante) é uma prostituta adolescente, com um visual de Marilyn Monroe, que aplica o golpe do suadouro em soldados que se preparam para embarcar a Coréia mas é explorada por uma gang de teddy boys que circulam pelas ruas sujas e bares infectos do Brooklyn pobre e miserável. No final, possuída por dezenas de homens, numa noite de total degradação, Tralala fica ao lado do adolescente apaixonado, num momento de imensa ternura. Mais provocador ainda é o personagem Harry Black (Stephen Lang), um líder sindical, casado, pai de um garoto, que se envolve em negócios escusos, apaixonado por um homossexual e termina praticamente crucificado. Outro homossexual, Georgette, apaixonado (e humilhado) pelo líder do grupo de jovens marginais, viciado em benzedrina e heroína, é vítima das drogas. Há, entretanto, personagens positivos: o presidente do sindicato - que consegue levar a categoria a vitória; o simplório mas sincero pai-operário Big Joe (Burt Young, conhecido pela série "Rocky") às voltas com a família e preocupado com a gravidez da filha roliça e abobalhada - mas que acaba casada e feliz; seu irmão Freddy e sua cunhada Teresa, também operários, integrados na luta social. Produzido com recursos da Alemanha, rodada entre Nova York e estúdios em Munique, na Alemanha, "Noites Quentes no Brooklyn" é daqueles filmes-denúncia, realizado com garra e ritmo por um diretor que, em seu primeiro trabalho conhecido no Brasil - Cristiane F..." chocou pela coragem que abordou uma das questões mais sérias de nossa época - o consumo de drogas pesadas pelos jovens. Como raros conhecem no Brasil o romance que Selby escreveu quase como uma catarse - ele foi um dropout, viciado em drogas, alcoólatra, que trabalhou como operário e colocou em seu livro o que observou no Brooklyn do início dos anos 50 - não acontece, neste caso, aquela cobrança inútil quando pernóstica: a fidelidade ao original. Obviamente que para uma obra que, evitada por anos pelos editores mas que ao ser publicada chocou milhares de leitores, na qual há pormenorizada descrições dos múltiplos personagens e acontecimentos, para se chegar a redução de 102 minutos houve necessidade de se enxugar a sua estrutura. O diretor Edel trabalhou com extrema competência, fazendo um script ajustado, reunindo um elenco explêndido (com artistas pouco conhecidos no Brasil) e encontrando no excelente fotógrafo Stephan Czapsky o iluminador capaz de captar o Brooklyn, em seu bolsão de miséria, pocilgas e sucata, tanto material quanto humana, neste filme de fortíssima visão social - completado com uma trilha sonora perfeita de Mark Knopfler. Lamentável que seu lançamento seja feito de forma tão obscura, ficando praticamente como uma obra relegada pelo público que, por falta de informação (e interesse) está fazendo que o cine Astor tenha, nesta semana, uma das menores taxas de ocupação em sua existência.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
24/07/1991

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