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Uma aula de Brasil com a "Memória Viva" de Aloísio

"Porque, na verdade, o verdadeiro cinema, no seu sentido completo e no seu sentido verdadeiro e íntegro, é o que os senhores fazem. É a aproximação do fenômeno em qualquer direção, na direção científica, na direção didática, na direção puramente lúdica. O documentário é, por natureza, o verdadeiro cinema". (Aloísio Magalhães, no discurso de abertura do Encontro Nacional de Documentarista Cinematográficos, em Brasília, 16 de novembro de 1981). A intenção de Octávio Bezerra era realizar um curta-metragem sobre Aloisio Magalhães. Como recurso inicial tinha apenas cinco latas de negativos, prêmio do Concine num concurso de roteiros. Projeto [despretensioso] mas amoroso, uma homenagem a um animador cultural que não chegou a conhecer em vida mas cuja obra há anos admirava. Do contato com a viúva de Aloisio, a artista plástica Solange Valborg Magalhães e alguns amigos, o projeto evoluiu. A leitura dos discursos, conferências e entrevistas de Aloisio (*) o convenceram de que ao invés de um curta justificava-se um longa. Uma via crucis para levantar os recursos necessários foi iniciada, incluindo-se a colaboração de (poucas) das 90 empresas para as quais Aloisio criou marcas e programação visual (Unibanco, Banco Mercantil de Pernambuco, Petrobrás, Banco do Brasil) e a Fundação Nacional Pró-Memória, por ele idealizada e criada a 16 de janeiro de 1980, ajudaram a financiar parte dos Cr$ 700 mil que custou o filme (corrigidos hoje daria ao redor de Cr$ 200 milhões). Otávio entendeu que não poderia fazer de "Memória Viva" um filme-reportagem ou uma biografia enaltecedora simplesmente. Pela própria grandeza das idéias e preocupação no pensar de Aloisio Magalhães o roteiro extrapolou para um retrato do Brasil verdadeiro, sincero, contraditório e, naturalmente inquieto. O homem - Aloisio Magalhães (Recife, 8/11/1927) - Pádua, Itália - 13/6/1982) foi um homem inquieto em termos Culturais. Um de seus melhores amigos, José Laurintino Gomes, lembra um epíteto de Machado de Assis ("saco de espantos") para definir a multiplicidade de seus interesses quando, ainda adolescente, já atuava no Teatro do Estudante de Pernambuco e participava do grupo O Gráfico Amador, em Recife. Em sua formação cultural, acadêmica (diplomado em Direito nunca exerceria a profissão) e política (teve participação nos movimentos de rua que se seguiram ao assassinato pela polícia pernambucana do estudante Demóclito de Sousa Filho, no Recife, em 1947) ficariam já as marcas em um homem que, ao longo de sua vida, nunca se contentou com o definido e buscou sempre aprofundar-se em torno dos problemas culturais, especialmente voltada ao saber e a inventividade popular e nunca abandonando aquilo que sempre se orgulha - a pernambucalidade. A presença de Aloisio na vida cultural brasileira, seja como produtor artístico (pintor, designer), professor (da pioneira Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio de Janeiro) e executivo, idealizador do Centro Nacional de Referência Cultural, depois no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ Pró-Memória e, por fim, na Secretaria da Cultura do MEC (cargo que ocupava, quando, numa reunião dos Ministros da Cultura dos Países Latinos, em Veneza, há 10 anos, sofreu duas hemorragias cerebrais, vindo a falecer em Pádua, aos 55 anos de idade) foi sempre um homem voltado a valorização dos bens culturais - com um pensamento (e ação) lucidamente prático. Entre tantas lições, deixou a imagem do estilingue - que repetia em seus pronunciamentos a respeito da política cultural: quanto mais nos afastamos do presente em nossa valorização cultural mais longe chegaremos no futuro, ou seja, o conhecimento crítico do passado como elemento fundamental para qualquer projeto ou programa durável no futuro. "Memória Viva" tem o sentido de denúncia e atualidade, abrindo um leque de informações ao espectador que é conscientizado das questões que preocupavam a Magalhães e que hoje, , continuam a espera de soluções. Se a documentarista Tania Quaresma, há 18 anos, em seu magnífico "Nordeste: Repente, Cordel e Canção" propunha um mapeamento de aspectos da cultura popular de uma extensa região, rica e contraditória (filme de maior importância até hoje insuficientemente conhecida, Bezerra, em "Memória Viva" retoma uma explanação mais ampla de uma temática que comporta longas apreciações e discussões - orais e visuais. Propositalmente buscando o melhor nas imagens - seja em arquivos (por exemplo, sobre o referencial da morte do estudante Domóclito, Bezerra usou seqüências da [passeata] dos 100 mil, no Rio de Janeiro, fotografados por José Carlos Avellar para o proibido "Manhã Cinzenta", de Olney São Paulo, em 1968) ou nas imagens captadas em vários pontos do Nordeste (e também no Rio de Janeiro) buscadas pela câmara de Miguel Rio Branco. Há, inclusive, seqüências especialmente produzidas, que se integram a proposta procurada. Uma emocionante roda-de-samba num botequim próximo ao cemitério do Caju-RJ, reúne Dona Zica, Herivelto Martins, Carlos Cachaça, dona Neuma e mais os atores Wilson Grey e Rui Planah cantando " As Rosas Não Falam" (Cartola). Um momento de ternura, referencial ao lado boêmio de Aloisio, bom de copo, carnavalesco, amigão de Albino Pinheiro e da turma de Ipanema, que tinha bonita voz, como, em seqüência anterior, diz sua velha mãe, dona Henriqueta, numa gravação feita em Olinda. Assumindo, tanto a afetividade quanto a crítica, em outra seqüência Bezerra, com base no depoimento de outro dos maiores amigos de Aloisio, o jornalista Felix de Athayde, reconstituiu um almoço (filmado no Palácio da Cultura - RJ, diante do Painel de Portinari) no qual "autoridades" e empreiteiros (interpretados por amigos de Aloisio como Orlando Senna, Ferdi Carneiro, dona Carmen Portinho, entre outros) discutem a "importância" do Brasil realizar obras grandiosas - tipo Metrô, Angra ou Itaipu. A ironia não poderia ser melhor [sintetizada]. Só nas últimas cenas se ouve a voz do próprio Aloisio, [sintetizando] uma lúcida colocação em torno da cultura e da política (**). Na trilha sonora, na qual há desde cantos populares nordestinos e a voz negra de Clementina de Jesus até a "Inovação da Defesa da Pátria" de Villa Lobos, o encerramento é também emotivo com João Gilberto, em toda sua brasilidade cantando "Sandália de Prata" (Ary Barroso), enquanto Bezerra assina o filme afetuosamente, dedicando-o "a todos aqueles que acreditam na cultura como formação, a todos os anônimos e solitários trabalhadores que mantém viva a memória de um povo". Notas (*) "E Triunfo? - A Questão dos Bens Culturais do Brasil", coletânea de discursos, pronunciamentos e entrevistas de Aloisio Magalhães, organizado por Joaquim Falcão, João de Souza Leite e José Laurentino de Mello (Editora Nova Fronteira/ Fundação nacional Pró-Memória, 1985, 256 páginas). Básico também na elaboração do roteiro de "Memória Viva" foi a longa entrevista de Aloisio Magalhães ao jornalista Zuenir Ventura, na revista "Isto É" (dezembro 81). (**) Diz Aloísio Magalhães: "Acredito que para resolvermos os problemas econômicos dos países em desenvolvimento, seja indispensável perdermos a nossa latinidade, ao contrário. Mas também não posso aceitar, que não pode deixar de ser levado em conta quando se fala em cultura, que seja deixado de lado os problemas econômicos e continuarmos debaixo dos riscos terríveis da pobreza, da miséria e da morte".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
12/03/1992

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